IMPRIMA O ARTIGO

NO ÁLBUM DO FIGUEIREDO

Ainda que conhecido sobretudo por sua poesia, Casimiro era também um talentoso prosador, como se vê por esta bela página deixada no álbum de um amigo de Barra de São João que o poeta reencontrou um dia na Corte.

I

Foi há mais de 10 anos. Lembra-se?

Os tempos corriam iguais a estes, e o mesmo sol de fogo que nos queima agora, iluminava então a natureza esplêndida dos trópicos.

Lá, no meio dos perfumes do sertão, debruçada à beira de um rio, modesta e simples como uma flor das montanhas, erguia-se uma vila encantadora: era a Barra de S. João.

Não era bonita? Por quê?!…

Não tinha ela um céu todo azul, um rio manso como um lago, e um mar que soletrava nas praias o seu poema de amor?

Lembra-se?

No cair de uma dessas tardes de outono, tão tristes e tão belas, uma criança saltava alegre pelos campos e um moço a contemplava sorrindo. O menino ia brincar nas moitas floridas da restinga, colhia pitangas e cambuís, e ─ construtor improvisado ─ lançava às águas o seu barquinho de cortiça, desejando-lhe uma ─ feliz viagem! De noite adormecia cismando alguma travessura, e pela manhã acordava-se cantando e rindo!

II

As laranjeiras deram novas flores e novos frutos, as pitangueiras caíram, os anos sucederam-se uns aos outros, e a criança fez-se homem! Não o filho do sertão, alegre, cândido e feliz, na primavera e na inocência de sua vida; mas um moço sombrio, triste como o epitáfio de uma sepultura; sem o riso das alegrias da juventude, com saudades imensas do passado, e sem crença ou esperanças no futuro!

Deus, que dá voz às vagas do oceano, que dá amor ao ninho da andorinha, que dá novas galas à árvore que perdeu as folhas, Deus tornou a juntar um dia no caminho da existência o moço e a criança de então. Assim duas tábuas de um navio naufragado, boiando separadas na vastidão imensa do oceano, vão depois encontrar-se quando o mar as atira quase juntas na mesma praia.

O moço de então pede um souvenir ao moço de hoje, e ele ─ o filho da tristeza ─ deixa modestamente o seu nome, protesto de estima e amizade que de certo crescerá com os anos.

Vê? ─ Dizem que eu sou poeta, e no entanto em vez de um hino brilhante de seiva e mocidade, preferi abrir o livro de minh’alma e traduzir aqui ─ uma página do passado! ─

Rio ─ Outubro 20 ─ 1858              

C. de A.

COMENTÁRIOS

1) Outubro de 1858 foi um mês de altos e baixos na vida de Casimiro. No dia 4, por exemplo, escrevendo ao seu amigo e confidente de Porto das Caixas, Francisco do Couto Sousa Júnior, lhe diz que no dia seguinte iria para Petrópolis, devendo demorar-se por lá algum tempo. A rigor, estava ainda convalescendo da varíola, que o deixara de cama por todo o mês de agosto. Assim, foi sensato que aceitasse o convite do patrão e amigo, Antônio Francisco da Costa Cabral, que costumava levá-lo para passar os fins de semana em sua casa em Niterói. Desta vez, o convite, que fora feito no começo de setembro, era para que Casimiro passasse uma semana na serra. O restante do mês, contudo, foi de angústias, aborrecimentos, e muita ansiedade. É o que transparece deste trecho de uma nova carta ao Couto, datada de 27:

“Maldita a hora em que eu comecei a fazer versos! Parece que por uma fatalidade todos os que têm essa mania hão de sofrer constantemente! Bem sabes o desgosto que me acompanha e que me tem mudado o gênio para uma tristeza que nada consola; bem sabes a luta constante em que tenho vivido, por que infelizmente não tenho um Pai, como os outros que auxiliam e protegem a vocação de seus filhos.”

Foi nesse clima de insatisfação e revolta, que Casimiro reencontrou na corte um velho conhecido dos dias de infância, José Nunes de Figueiredo, que o induziu a redigir a página acima. Trata-se, provavelmente, duma cópia que o poeta teria feito para guardar o texto consigo, uma vez que, como o título sugere, o original teria sido escrito no álbum do Figueiredo.

Tendo permanecido inédita por mais de 80 anos, essa bela página só se tornou conhecida em junho de 1940, quando Alves Cerqueira a publicou no no 54 da Revista do Clube Militar. Posteriormente, a Academia Fluminense de Letras a republicou duas vezes, acompanhada do respectivo manuscrito: em 1950, em A naturalidade de Casimiro de Abreu e mais falsidades, erros e mistificações de um biógrafo, e em 1956, em Autógrafos de Casimiro de Abreu.

2) José Nunes de Figueiredo, que tinha cerca de quatro anos a mais que Casimiro, era filho de Antônio Nunes de Figueiredo e Carolina Hilário do Nascimento. É possível que fosse natural de Porto das Caixas, onde morava seu pai, que ali morreu em 23 de janeiro de 1840. Aliás, quase dois anos antes do reencontro com Casimiro, o próprio Figueiredo passara uma temporada naquela localidade, de onde partiu desgostoso. Daí que tenha publicado no jornal O Popular de 17 de dezembro de 1856, um inusitado e polêmico “Tributo de gratidão”, dirigido não só a seus amigos, mas também aos caluniadores que o teriam espezinhado. Diz ele a certa altura do tributo: “… muito lhes agradeço suas inspirações, e os desculpo, pois que conheço que não podem sair de um rançoso materialismo, em razão de suas mesquinhas ideias não lhes conceder licença para pensar em cousas que sejam úteis a si, ou à sociedade.”

3) Não foi por acaso que Casimiro e Figueiredo tornaram-se amigos. Sentimentos de delicadeza e sensibilidade devem tê-los unido na fase infanto-juvenil, quando as inclinações estéticas de ambos já se fariam notar. Figueiredo, por exemplo, iria abraçar uma profissão, a de alfaiate, que tem muito de artística, que exige de quem a exerce um apurado sentido de gosto, de harmonia, de beleza. Além de alfaiate, que é como aparece no Almanack Laemmert de 1859 e 1860, Figueiredo era músico. Foi, aliás, um dos nobres cidadãos que, no domingo de 8 de junho de 1873, na antiga Rua dos Pescadores, atual Pereira de Sousa, em Macaé, participaram da reunião em que foi fundada a “Sociedade Particular de Música Nova Aurora”, cuja sede, na atual Av. Rui Barbosa, foi inaugurada em 1891. Orgulho dos macaenses, a Nova Aurora está às vésperas de completar seu sesquicentenário em 2023.

4) José Nunes de Figueiredo viveu algum tempo longe do Rio do São João, para onde retornou nos anos de 1870. Passou a residir em Rio das Ostras, como se vê na “Lista de Votantes” de Barra de São João, organizada em janeiro de 1880. Ali, aparece não mais como alfaiate, mas como músico. Dispõe de 300 mil réis de renda, tem 45 anos de idade, e é casado. Sua esposa, Maria Lima de Figueiredo, filha de Joaquim Passos de Brito Lima e Ana Maria da Conceição, lhe deu ao menos dois filhos, Arlindo e Altino, provavelmente nascidos em Rio das Ostras: o primeiro, em 19 de novembro de 1877; o segundo, em 16 de março de 1880. Foram ambos batizados pelo vigário João Ferreira Passos, o mesmo que lavrou os óbitos de Casimiro e seu pai.

5) Na frase “Não era bonita? Por quê?!…”, Casimiro deixa implícito que Figueiredo parecia não ver encantos em Barra de São João. Talvez esteja aí um indício de que não fosse filho do lugar, já que parece impossível, sobretudo para alguém ali nascido, não se curvar às inúmeras belezas daquela localidade.

6) O fato de, às vezes, Casimiro definir-se a si mesmo como “filho do sertão”, levou alguns autores a descartarem a possibilidade de que ele houvesse nascido à beira-mar. Esta página, contudo, deixa claro que ao escrever da corte, a quase 200 km de distância de Barra de São João, Casimiro se refere àquele local como situado “no meio dos perfumes do sertão”. Ou seja; olhadas de longe, do Rio de Janeiro, todas aquelas plagas, até mesmo as que ficavam junto ao mar, reduziam-se na mente do poeta a simples “sertão”.

[Extraído de Casimiro de Abreu Obra completa – Organizada e comentada por Mário Alves de Oliveira, Academia Brasileira de Letras e G. Ermakoff Casa Editorial, Rio, 2010, págs. 348/9, 533/4 e de Casimiro de Abreu através de seus manuscritos, Academia Brasileira de Letras e Josephine Edições, Rio, 2013, págs. 76 a 81]

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