IMPRIMA O ARTIGO

AINDA EXISTE O PRÉDIO
QUE CASIMIRO HABITOU EM LISBOA

Quando começamos a fazer pesquisas sobre Casimiro, incluímos, no rol das nossas pretensões, achar o local ou locais que ele habitara em sua longa estada em terras portuguesas. Tivemos sorte, e descobrimos que o prédio que ele habitou em Lisboa continua de pé. E ainda que pareça fantasia, é um dos muitos que ao longo de 65 anos, entre 1868 e 1933, foram comprados pelo Banco de Portugal para transformá-los no seu gigantesco Edifício Sede.

RUA DOS CAPELISTAS, 66

Vários fatores levaram os irmãos Marques de Abreu (José Joaquim, pai de Casimiro), Francisco José e Manoel José, à decisão de liquidar a empresa comercial que mantinham no Rio de Janeiro, e mudarem-se para Portugal.

Com problemas de saúde, Manoel José partiu na frente em 13 de novembro de 1853 na companhia de Casimiro, enquanto os dois outros se lançaram à tarefa de acertar as pendências comerciais e judiciais, visando a preparar a própria viagem, além das de Luísa, Maria Joaquina e Albina Teresa. Daí que só pudessem partir em 29 de abril de 1854 no vapor Brasileira. 

Depois de uma viagem demorada e cheia de imprevistos, aportaram na capital portuguesa a 30 de maio. E então, como se não bastassem os atropelos vividos no mar, tiveram de passar uma temporada em quarentena no Lazareto local. Só depois disso é que puderam juntar-se a Manoel José e a Casimiro, que os aguardavam havia mais de seis meses.

Ora, desde o começo de 1991, quando começamos a realizar pesquisas em torno da vida e da obra do autor de Primaveras, incluímos no rol das nossas pretensões algumas que àquela altura não passavam de delírios. Dentre elas, uma das mais ambiciosas era achar o local ou locais que o poeta habitara em sua estada de três anos e meio em Portugal. Parecia tarefa impossível, uma vez que, com resultados nada animadores, já fora tentada inclusive por autores portugueses.

Pesquisadores e detetives dependem muitas vezes de um pormenor, de uma pequena pista que os leve a esclarecer uma dúvida ou até mesmo um crime. No nosso caso, a pista apareceu em 1993, quando a sorte nos brindou, e pôs em nossas mãos a carta aqui transcrita, na qual Manoel José anuncia ao irmão Narciso haver chegado a Lisboa na companhia de Casimiro.

Carta do tio de Casimiro, Manoel José Marques de Abreu, citando o endereço deles em Lisboa.

“Mano Narcizo

Lisboa 16 de Dezembro de 1853.

Obrigando-me o meu mau estado de saúde a retirar-me do Rio de Janeiro cheguei a esta Cidade no dia 7 do corrente trazendo em minha companhia nosso sobrinho Cazemiro filho do Mano José, este e o Mano Francisco ficaram de saúde.

Rogo o favor de entregares a carta inclusa à Mana Maria Joaquina e de me recomendares às Manas Miquelina, Narciza e sua família. Nada mais se me oferecendo dizer-te nesta ocasião, desejo-te muito boa saúde, acompanhada de felicidades e sou como sempre com verdadeira estima e amizade

Teu Mano & amigo muito afeito que te estima

Manoel José Marques de Abreu

N.B.

Minha morada nesta Cidade é na Rua dos Capelistas, no 66, 2o andar.

Endereçamento:

Senr Narcizo Antonio Marqes de Abreu

Em Sta Maria de Oliveira, lugar dos Carvalhais

Guimaraens

Tratava-se, para nós, de um documento de enorme importância, sobretudo pelo N.B. (Note Bem), com que Manoel informa a Narciso o endereço em que se achava instalado. Era a pista, o pormenor a que nos referimos acima, que nos abria a possibilidade de chegarmos ao primeiro imóvel que Casimiro ocupara em Lisboa.

Se a numeração das ruas da capital portuguesa tivesse se mantido inalterada nos 140 anos decorridos da data da carta, teria sido fácil acharmos o prédio apontado pelo tio do poeta. Mas raramente isso acontece. As cidades têm vida, sofrem contínuas mudanças, e na passagem dos dias, dos meses e dos anos, acabam ratificando o que diz um escritor; “O tempo troca a roupa do mundo”.

Disso, Lisboa é o melhor exemplo. Mais que passar por mudanças, ela teve de ser parcialmente reconstruída após o terremoto de 1º de novembro de 1755, que destruiu por completo a sua parte central. Era um sábado, e era dia de Todos os Santos, o que fez com que as igrejas estivessem lotadas de fiéis para as missas da manhã. De repente, por volta das nove e meia segundo relatos da época, a cidade foi surpreendida por um terremoto de brutal intensidade, que os estudiosos acreditam ter chegado a 9 graus na escala Richter, onde o grau máximo é 10.

Pouco sobrou do centro de Lisboa, cidade então formada por ruas tortuosas e becos que os velhos mapas nos mostram. Sacudida por sete ou mais minutos, quase tudo veio abaixo, fazendo com que o fogo das velas gerasse incêndios por toda parte. Para completar, um tsunami de altíssimas ondas inundou toda a Baixa, arrastando e matando a multidão que para lá correra, tentando escapar ao fogo e aos desabamentos.

As perdas humanas foram incalculáveis. Há quem fale em dez mil mortos. Quanto às perdas materiais, há cálculos que apontam para mais de dez mil prédios arruinados, mais de trinta igrejas reduzidas a pó, entre as quais a de São Julião, de que ainda falaremos. Desapareceu a Biblioteca Real com milhares de manuscritos, e nada restou da suntuosa Ópera do Tejo, inaugurada havia só sete meses.

As hecatombes costumam revelar grandes líderes, como se viu então em Portugal. Desde 1750 o trono era ocupado pelo rei D. José, que confiara o cargo de primeiro-ministro a Sebastião José de Carvalho e Melo, advogado por Coimbra, diplomata, futuro Conde de Oeiras, e depois Marquês de Pombal, título com que passou à posteridade. Obstinado, duro e corajoso, o ministro assumiu o controle da situação, lançando-se não só à reconstrução da cidade em destroços, mas também, como notável estadista, ao longo processo de modernização do país.

Aliás, é só por força do hábito que no caso de Lisboa ainda se fala em reconstrução. Sob certos aspectos, ela não foi reconstruída, mas construída. Não na mesma proporção que Brasília, que foi tirada do zero, enquanto naquela foi sobretudo o seu centro que fora arruinado. Mas a Lisboa de hoje, que encanta os visitantes com seu charme e beleza, essa, nada tem a ver com a cidade anterior ao terremoto. Basta dizer que, após o sismo, não foi permitido aos donos de terrenos afetados, reconstruírem seus imóveis como bem entendessem. Foi traçado um plano pioneiro, mas rígido, com pesadas multas aos que tentassem burlá-lo. Com tais exigências, agravadas pela falta de recursos financeiros que o sismo gerara, compreende-se que as obras tivessem se estendido por quase um século.

Vejam, a propósito, este fragmento tirado da História concisa de Portugal, de José Hermano Saraiva, que aponta os limites impostos pelo futuro marquês:

“O plano de Lisboa foi desenhado e dirigido por arquitectos portugueses; Eugénio dos Santos, Manuel da Maia, e mais tarde Carlos Mardel. Mas a leitura dos vários decretos sobre a reconstrução mostra que a intervenção do ministro foi decisiva. A cidade nova reflectia a concepção que o estadista tinha do Estado: planta geométrica e rectilínea, alçados iguais para todos os edifícios, ausência de palácios ou de qualquer sinal exterior que pudesse sugerir a nobreza do proprietário. Nenhuma porta diferente. A preocupação da uniformidade foi ao ponto de se decretar a proibição de alegretes ou vasos com cravos às janelas. As próprias igrejas foram obrigadas a alinhar pela altura dos demais prédios e também o desenho delas foi feito pelos arquitectos do Estado. Na praça principal reúnem-se as forças que para Pombal deviam formar o País: nos andares nobres as secretarias de Estado, por baixo delas, a servir-lhes de suporte, as lojas do comércio. E a presidir à imensa parada, a estátua do rei, cujo cavalo avança esmagando víboras (as “víboras da reação”). Do antigo paço real não ficou vestígio. O próprio nome do lugar – Terreiro do Paço – foi corrigido: Praça do Comércio.” 1

CEM ANOS DEPOIS DO TERREMOTO

Vejamos agora um segundo texto, que traça um retrato da capital portuguesa no primeiro centenário da tragédia. Trata-se de uma carta escrita por um brasileiro ilustre, o Visconde Nogueira da Gama, e por ele publicada em seu livro Minhas memórias. Vem datada de “Lisboa, 12 de maio de 855” (sic), quando lá se achava também o nosso Casimiro:

“Não está estacionário o material da cidade: vêm-se por toda a parte magníficas edificações, assim públicas como particulares, e são já bem raras as ruas e praças que não sejam perfeitamente calçadas, algumas até com luxo, fingindo tapetes pela variedade de pedras de diversas cores, de que abunda o país.

A cidade é bem limpa e policiada; mas, sua iluminação a gás é inferior à do Rio de Janeiro, e a alguns outros respeitos está Lisboa muito abaixo daquela capital; por exemplo: ainda não tem outra água senão a dos seus antigos chafarizes, alguns bem curiosos como obras de arte; todo o transporte de cargas pelas ruas é ainda feito, a pau e corda, pelos galegos, e por carros de bois, de eixo móvel, tão toscos e pesados como os dos pontos mais atrasados das nossas províncias.

O mesmo atraso se observa nas embarcações pequenas que navegam o Tejo, a que chamam Fragatas. Não me lembro de ter visto iguais na baía do Rio de Janeiro, nem mesmo no tempo dos Perus dos portos do Pilar e da Estrela.

Exceto as carruagens e coupés de uma companhia, há pouco estabelecida, não se encontra um veículo da praça, que não seja pelo modelo dos que naturalmente estavam na berra, no tempo do terremoto.” 2

Tendo embora chegado a Lisboa um ano e meio antes que o visconde, não seria muito diferente a cidade que Casimiro encontrou. Mas vale lembrar que, antes de partir para Portugal, ele havia conhecido o centro do Rio de Janeiro com seus morros, suas ruas e travessas tortuosas. Do mesmo modo que a Lisboa anterior ao terremoto, nossa antiga capital tinha nascido de maneira aleatória, e crescera à proporção que as necessidades foram surgindo. Daí supormos que, ao chegar à capital portuguesa e alojar-se exatamente na área que se erguera a partir de um plano urbanístico, ele possa ter-se encantado com a simetria das ruas e a elegante sobriedade dos prédios. A enorme e bela Praça do Comércio, à qual da sua porta ele chegava em dois minutos, certamente o impressionou com a majestosa estátua equestre do Rei D. José, obra prima de Machado de Castro. Depois, não deve ter tardado a conhecer uma segunda e bela praça, o Rossio, que em 1836 passara a chamar-se Praça de D. Pedro IV, nome que ainda conserva. Ali, além do Teatro de D. Maria II, duas coisas devem ter-lhe interessado; o chão, calcetado com milhares de pedras coloridas, criando a ilusão de um tapete ondulado, e no centro deste, a exótica estrutura que o povo apelidara “o galheteiro”, projetada como base do monumento a D. Pedro, Imperador do Brasil, e rei de Portugal por quase dois meses. Inaugurado em 1870 com pedestal diferente do que o povo rejeitara, o monumento converteu-se em referência turística da capital portuguesa.

Desse modo, como qualquer pessoa que se mude para um novo país, ou uma nova cidade, Casimiro foi aos poucos conhecendo lugares e pessoas, e adotando costumes que devem tê-lo ajudado a mitigar a dor do exílio. Com o tempo, acabaria por enaltecer os “mil e um atrativos” de Lisboa. Afinal, era atento a pormenores e, não por acaso, aos 13 anos de idade, havia revelado um surpreendente talento para a cópia de gravuras. Era alguém que sabia ver. Nada lhe escapava.

Voltando a focalizar a Rua dos Capelistas, onde Casimiro hospedou-se com seu tio, lembramos que se tratava de uma rua da Freguesia de São Julião, isto é, ligada à Paróquia de São Julião, uma das mais antigas da cidade. Alguns autores atribuem a sua fundação ao Rei Afonso Henriques, que ao encontrar no local uma imensa mesquita, mandou que a substituíssem por uma igreja dedicada a São Julião e Santa Baziliza, casal de mártires sírios naturais de Antióquia.

Devemos acrescentar que essa primeira igreja ficava entre as atuais ruas Áurea e Augusta, e tinha localizada em seu adro a ermida de Nossa Senhora da Oliveira, uma relíquia da Lisboa medieval. Destruídas no terremoto, foram ambas refeitas, sendo que a minúscula ermida, a que o povo se refere como Oliveirinha, se encontra quase no mesmo chão que ocupou noutros tempos, só que agora embutida, sutilmente envolvida pelo prédio de número 140 da Rua de São Julião.3

Quanto à primitiva Igreja de São Julião, foi das que mais sofreram com a terrível catástrofe. Nela, segundo documentos existentes, morreram soterradas ou queimadas mais de 600 pessoas, entre as quais, 14 padres que estavam dizendo a missa. Do histórico templo, onde fora batizado o Papa João XXI, único chefe da igreja católica nascido em Portugal, pouca coisa restou além da pia batismal e do imenso sino. Quanto a este, foi depois utilizado na fundição da estátua equestre do Rei D. José, e acabou por motivar os versos gaiatos que um pasquim publicou: “Já fui sino, fui badalo, / hoje sou Rei, sou Cavalo.”

Diferentemente da Oliveirinha, a Igreja de São Julião foi erguida alguns metros à esquerda de seu antigo local, indo ocupar o espaço que pertencera à Patriarcal de Lisboa, também arrasada no sismo. E como tantas obras do pós-terremoto, sua reconstrução foi lenta, só vindo a ser concluída em 1810, ainda que aberta aos fiéis desde 1802. Com a frente voltada para o Largo de São Julião, ocupava um dos lados do enorme quarteirão de 70 por 30 metros, formado por ela e seus anexos, e pelas ruas Áurea, de São Julião e Nova d’El Rei, esta última mais conhecida por Rua dos Capelistas, por abrigar o comércio de sedas e modas.

Durou pouco essa segunda igreja. Seis anos depois, o fogo consumiu a sua parte interna em 4 de outubro de 1816, dia seguinte ao das exéquias ali realizadas por alma de D. Maria I, “Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”, falecida no Rio de Janeiro em 20 de março daquele ano. Com essa nova tragédia que se abateu sobre a Igreja de São Julião, coube à humilde Oliveirinha desempenhar o papel de Igreja Paroquial, isto é, de Sede da Freguesia.

Não tardou muito, porém, e foi dado o primeiro passo para a reconstrução da igreja arruinada. Decidida a levantá-la, mas querendo conservá-la no mesmo local, sua mantenedora, a Arquiconfraria do Santíssimo Sacramento da Real Freguesia de São Julião, tomou a iniciativa de adquirir o terreno que ela ocupava à época do incêndio. Com essa compra, a confraria tornou-se dona não só do citado terreno, mas de tudo o que veio a ser nele construído, ou seja, a nova e terceira Paroquial Igreja de São Julião, com suas dependências e seus anexos.

A reconstrução, superados os obstáculos legais e financeiros, teve início em 20 de março de 1824, mas arrastou-se por mais de três décadas, até 21 de outubro de 1854, quando foi feita a trasladação do Santíssimo Sacramento, trazido em procissão solene da ermida da Oliveirinha. No dia seguinte, com a presença do Rei D. Fernando e seus filhos, e tendo por pregador o célebre padre Malhão, realizou-se a grande festa em Ação de Graças, que marcou a sagração do templo.

Deve ser dito, no entanto, que a sagração não significava o fim das obras. A igreja não tinha ainda a sua torre sineira, e os 13 sinos a ela destinados achavam-se na calçada da Rua dos Capelistas, encaixotados, a cerca de dez metros da porta de Casimiro. Mas nada impediu que a nova igreja fosse aberta aos fiéis, e mostrasse que a demora das obras tinha sido compensada. A freguesia ganhara uma Paroquial à altura, com oito capelas laterais, e tendo no altar-mor, artisticamente esculpidas, as imagens do casal venerado, Julião e Baziliza.

No batistério, recolocada em seu nobre lugar, lá estava a velha pia batismal trazida de Roma e feita em mármore de Carrara, que havia resistido ao terremoto e ao fogo. Enfim, uma bela igreja, como se pode ver pelas fotos que ilustram dois excelentes artigos de Mário Costa, publicados em 1961 nos números 88 e 89 da Revista Municipal de Lisboa.

Foi essa Igreja de São Julião (a última das três), que Casimiro conheceu, além de haver presenciado os derradeiros lances de sua reconstrução. Afinal, era quase colado nela que ele morava na Rua dos Capelistas, lado sul do quarteirão em que ela ocupava o lado leste. Desse modo, ao sair à rua, era ela que ele via à direita, enquanto à esquerda via ao longe a velha Sé de Lisboa. Mas o que ele via melhor, à sua frente, do outro lado da rua, era um dos quarteirões mais conhecidos não só da cidade, mas de todo o país. Afinal, era nele que ficavam o Banco de Portugal e a Câmara Municipal de Lisboa, além da Associação Comercial da cidade, e a Companhia dos Barcos a Vapor do Tejo. Porém, o mais importante para a história que estamos contando, é que era exatamente nele que morava e trabalhava Joaquim José Marques de Abreu, o outro tio de Casimiro a que já nos referimos.

Há muito o que dizer sobre tal quarteirão, mas vamo-nos limitar ao que aqui nos interessa. Diremos, pois, que era um conjunto pombalino, formado pela Rua dos Capelistas (lado que Casimiro via de frente ao descer de seu prédio) e pela Rua do Arsenal, no lado oposto. À esquerda (na visão de Casimiro), com frente para a Rua Áurea, ficava o prédio da Câmara Municipal, muitas vezes usado como residência pela Rainha D. Maria I em suas estadas em Lisboa, fugindo à solidão do Palácio de Queluz. Por fim, à direita, com frente para o Largo do Pelourinho, hoje Praça do Município, ficava o prédio destinado a ser a sede da Câmara, mas que desde 1822 achava-se alugado ao Banco de Lisboa, que mais tarde, em 1846, iria transformar-se em Banco de Portugal.

Era assim a Praça do Município (ex do Pelourinho) que Casimiro conheceu: o Pelourinho, a Câmara Municipal destruída pelo fogo (desenho de Reinaldo Manuel dos Santos). À direita, a Rua do Arsenal. À esquerda, a Igreja de São Julião, atual Museu do Dinheiro. (“Archivo Pittoresco”, 1863, no 17, pág. 129)

Ocorreu, porém, que na noite de 19 para 20 de novembro de 1863, um calamitoso incêndio destruiu o citado quarteirão, riscando do mapa, junto com os demais prédios, os de nos 55, 55-A e 56 em que Casimiro teria trabalhado com seu tio Joaquim José Marques de Abreu. Quanto a este, que ali morara e comerciara por quase 40 anos, se viu forçado a se mudar para o no 29 da rua e freguesia de São Sebastião da Pedreira, uma região que se desenvolvia a passos largos.4 e 5

O BANCO DE PORTUGAL GANHA UMA NOVA SEDE

Outra vítima desse incêndio foi o Banco de Portugal. E embora o fogo não lhe tenha causado irreparáveis danos e perdas, a sua administração começou a nutrir a ideia de ter uma sede própria, que pudesse concentrar as múltiplas e complexas atividades da instituição.

Discutidas as muitas possibilidades visando àquela meta, inclusive a de se construir um moderno edifício noutro ponto da cidade, decidiu-se buscar uma solução que mantivesse o banco na baixa lisboeta, onde sempre estivera, e onde se supunha que pudesse melhor exercer as funções de banco emissor e controlador das demais casas bancárias. E foi assim agindo que, em 11 de setembro de 1868, quase cinco anos após o trágico incêndio, o Banco de Portugal deu o primeiro grande passo na execução de seu plano, adquirindo, no quarteirão em que Casimiro se hospedara, dois prédios contíguos; os de números 17 a 37 (antigos 7 a 15) da Rua Áurea; 142 a 148 (antigo 72) da Rua Nova d´El Rei (vulgo “dos Capelistas”), e 155 a 161 (antigos 114 a 115) da Rua de São Julião (vulgo dos Aljibebes).

Feitas tais aquisições, e executadas as necessárias obras de adaptação, o banco se mudou em 28 de março de 1870 para a nova Sede, com a frente voltada para a Rua Áurea, posição que mantém até hoje. Depois disso, dando continuidade ao plano que se impusera, e ao longo de nada menos que 65 anos, fez mais seis aquisições naquele bloco; três no século XIX, e quatro no XX, a última das quais em 7 de junho de 1933, data em que, após árduas e demoradas negociações com a Arquiconfraria de São Julião, comprou-lhe o edifício da igreja, tornando-se com isso o dono único de todo o quarteirão.6

Das aquisições acima apontadas, há duas que nos interessam mais que as outras. A primeira, é justamente a que acabamos de abordar, aquela que permitiu ao banco instalar-se em sede própria, com frente para a Rua Áurea. Não vamos comentá-la neste artigo, mas podemos adiantar que será esse, 14 anos antes de passar a pertencer ao Banco de Portugal, o endereço de toda a família de Casimiro quando de sua chegada a Lisboa em maio de 1854.

Incêndio do Paço Municipal de Lisboa e do Banco de Portugal. Gravura em madeira – Archivo Pittoresco, 1863, no 58, pág. 297.

A segunda aquisição, é a que foi feita em 18 de agosto de 1890, dia em que o banco se tornou proprietário de mais dois prédios; um na Rua dos Capelistas, nos 160 a 164 (antigos 65, 65-A e 66), outro na Rua de São Julião, nos 175 a 181 (antigos 122 a 124). Desses, como os leitores já devem ter percebido, o que nos interessa de fato é o da Rua dos Capelistas, 66, em cujo 2o andar Casimiro se hospedou com seu tio Manoel José. E aqui, uma surpresa, uma revelação que nos custou muitos anos de pesquisas: esse prédio ainda existe. Ou, para sermos mais precisos, o “imóvel” ainda existe. O “prédio”, porém, “desapareceu”, já que alguns anos depois, o banco efetuou a unificação externa dos prédios que compunham o total do conjunto. Daí porque, visualmente igualado ao restante do bloco, diluído no Edifício Sede do Banco de Portugal, quem procurar agora pelo “prédio” em que Casimiro morou, e embora ele lá esteja, não mais o verá. Nem mesmo a porta de entrada que o poeta utilizava, e que ficava mais ou menos em frente à atual Rua Henriques Nogueira7, nem essa existe mais. Foi reduzida a uma simples janela gradeada, igual a dezenas de outras que lá se encontram.

Quanto à Igreja de São Julião, temos a dizer que ela encerrou suas atividades religiosas em 1934. Uma vez dessacralizada, teve as imagens e objetos litúrgicos transferidos para outras igrejas de Lisboa, sobretudo para a ermida da Oliveirinha. Posteriormente, com a anexação da freguesia de São Julião à de São Nicolau, as imagens do casal Julião e Baziliza foram novamente deslocados; desta vez, da Oliveirinha para a Igreja de São Nicolau, onde agora se encontram.

Decorridos mais de 70 anos da compra do edifício da igreja, o Banco de Portugal tomou a decisão de reabilitar e restaurar seu edifício sede, e dar um nobre destino ao interior do antigo templo, usado até então para atender a questões de logística da empresa.8 E assim, após realizar profundas e amplas obras em seu solo e subsolo, inaugurou ali, em 19 de abril de 2016, o moderno Museu do Dinheiro.

Reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755. Período do Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal. Desenho do quarteirão que veio a se tornar o atual Edifício Sede do Banco de Portugal.

NOTAS

1) José Hermano Saraiva, História concisa de Portugal, Publicações Europa-América Ltda, Mem Martins – CODEX, Portugal, 1987 (pp. 249/250).

2) Visconde Nogueira da Gama, Minhas memórias, Magalhães & Comp. Editores, Rua da Assembleia, 23, Livraria Moderna, Rio de Janeiro, 1893 (pp 22/23).

A terceira janela à direita de uma das portas do Banco de Portugal, a de nº 170 da Rua do Comércio, era, na época, uma porta de entrada. Por ela é que Casimiro subia até sua residência no segundo andar do prédio. 

3) A minúscula igreja de Nossa Senhora da Oliveira, a “Oliveirinha”, conta com apenas 12 bancos para 5 ou 6 pessoas cada um. No máximo 60 ou 72 pessoas sentadas. Teto retangular, com excelente pintura de Nossa Senhora cercada de anjos. Admiráveis trabalhos de azulejos nas paredes laterais, até o altar. Belo e único púlpito à direita. À esquerda, imagem de Nossa Senhora, que supomos da Oliveira. Tem na mão direita um ramo, talvez de oliveira, e na esquerda, um crucifixo. Toda vestida de preto, com coroa de ouro. Coro tomando a igreja de lado a lado. Fica na Rua de São Julião, 140, entre as ruas Áurea e Augusta. Aberta de 2ª a 6ª de 9 às 15 h. Do lado de fora, duas portas e um triângulo no topo, onde se vê um ramo verde de metal com azeitonas pretas. Local comovente, onde Casimiro deve ter estado ao menos uma vez.

4) Decidido a racionalizar a “numeração das portas dos prédios em cada uma das praças, ruas, travessas e becos e mais lugares públicos” da cidade, fazendo “cessar o estado de desordem, irregularidades e confusão” aí reinante, o Governo Civil de Lisboa publicou em 1º de setembro de 1859 um Edital, que aprimorava dois outros, de 1855 e 1858, cujos resultados haviam sido frustrantes.

Diante disso, do mesmo modo que os nos 65, 65-A e 66 da Rua dos Capelistas passaram a 160, 162 e 164, os nos 53, 54, 55, 56 e 57 do prédio em que morava o tio de Casimiro, Joaquim José Marques de Abreu, passaram a 153, 155, 157, 159 e 161. Daí porque, em 19 de abril de 1863 (sete meses antes do incêndio), ao casar-se com João Máximo Paes na Igreja de Santa Justa e Rufina, em Lisboa, Albina Theresa, a irmã caçula de Casimiro, é dada como moradora na “Rua dos Capelistas, no 157, 2º andar, freguesia de São Julião desta Cidade de Lisboa”, endereço fornecido também por seus tios Joaquim José e Francisco José, que serviram de testemunhas na cerimônia. (Torre do Tombo, Registros Paroquiais – Lisboa-Santa Justa, Livro C-21, Folhas 6/7, Registro no 8, Rolo de microfilme S.G.N 1120).

5) O incêndio ocorrido em Lisboa na noite de 19 de novembro de 1863 foi largamente comentado dez dias depois na primeira página do nosso Jornal do Commercio. Dali, tiramos um trecho que remete aos problemas enfrentados pelos moradores da Rua dos Capelistas, entre quais estariam sem dúvida Joaquim José Marques de Abreu e seus familiares.

“Pouco depois das 9 da noite, a sentinela postada no banco de Portugal deu notícia do fumo que se escapava de uma janela do 2º andar em que está a secretaria da câmara municipal, junto a uma das arcadas do Terreiro do Paço, no grande quadrado que faz frente para o largo do Pelourinho, rua dos Capelistas, rua do Ouro e rua do Arsenal. Aí se acham estabelecidos o banco de Portugal, o contrato do tabaco, a companhia de seguros Fidelidade, a das Lezírias, muitas lojas de câmbio, escritórios de comércio, banqueiros, confeiteiros, chapeleiros, etc.

Os socorros de bombas, aguadeiros, carpinteiros de machado, sob a direção do inspetor dos incêndios, J. J. Júlio de Carvalho, apareceram com rapidez. As mangueiras das bombas começaram a jorrar água para as duas janelas do 2º andar da secretaria municipal, donde saía espesso fumo, proveniente de papéis queimados, e pouco depois, labaredas.

O líquido parecia vencer o fogo pela volta das 10 horas. Haviam desaparecido as chamas das janelas; e as massas populares em número de 6.000 pessoas que pejavam o Terreiro do Paço, começavam a desfilar para os domicílios com a fagueira esperança de que tudo em breve estaria acabado.

Não era assim. O fogo, lavrando pelo interior dos edifícios, foi aumentando em intensidade, até que, rebentando pelos telhados, iluminou toda a cidade, exibindo a pavorosa intensidade do desastre. Em todo o quadrado só a parte que deita sobre a rua dos Capelistas é habitada por inquilinos permanentes. As outras partes só são ocupadas pelas direções e empregados, durante o dia, ausentando-se todos às 3 e 4 horas da tarde.

Se não fosse essa circunstância, talvez houvesse bastantes vítimas. Os pobres moradores da rua dos Capelistas começaram a lançar trastes à rua, e a sacar de casa o que tinham de mais valioso, apressando-se a procurar abrigo nas habitações dos parentes e dos amigos.”

6) Damos alguns dados das aquisições feitas pelo Banco de Portugal entre 1868 e 1933. Elas aparecem pormenorizadamente descritas nas páginas 247 a 256 e 261 a 267 do admirável livro Um sítio na Baixa – A sede do Banco de Portugal, de José Sarmento de Matos e Jorge Ferreira Paulo, publicado pelo Museu do Dinheiro – Banco de Portugal, Lisboa, 2013.

1868.set.11: Compra os prédios 17 a 37 (antigos 7 a 15) da Rua Áurea; os prédios 142 a 148 (antigo 72) à Rua dos Capelistas; os prédios 155 a 161 (antigos 114 a 115) da Rua de S. Julião; 1887.dez.28: Compra na Rua de S. Julião os prédios 163 a 173 (antigos 117 a 122); 1890.ago.18: Compra 2 prédios: na Rua dos Capelistas, o de nos 160 a 164 (antigos 65, 65A e 66); na Rua de S. Julião, o de nos 175 a 181 (antigos 122 a 124); 1894.abr.12: Compra o prédio no 183 a 189 (antigos 125 a 127) na Rua de S. Julião; 1904.ago.27: Compra na Rua dos Capelistas o prédio 166 a 170; 1907.mai.02: Compra ao Banco Lisboa e Açores o prédio 150 a 158 da Rua dos Capelistas; 1933.jun.07: Após longas e difíceis negociações iniciadas em 1910, o Banco compra à Arquiconfraria do Santíssimo Sacramento da Freguesia de S. Julião o edifício da Igreja de S. Julião e propriedade anexa. A Igreja tem frente e três portas para o Largo de S. Julião. Suas dependências e prédio anexo têm entradas, este e aquelas, pela Rua do Comércio 172 a 178 e 192, e pela Rua de S. Julião 191, 205 e 209. Correspondem-lhes ainda os nos 193 a 203, 207, 211 e 213 para a Rua de S. Julião, e 180 a 190 e 194 a 200 para a Rua do Comércio, uns e outros de antigas portas tapadas e transformadas em janelas gradeadas.

Das compras de 1868.set.11 e 1890.ago.18, por seu interesse na biografia de Casimiro, damos mais informações. A escritura de 11 de setembro de 1868 foi feita no edifício que o Banco de Portugal ocupava à Rua do Arsenal. Como vendedores, José Joaquim dos Reis e Vasconcellos, por si e como procurador de sua esposa Joanna Candida Stubbs e Vasconcellos. Como compradores, José Lourenço da Luz, Presidente da Direção do Banco de Portugal e mais oito de seus diretores. Venda de duas casas contíguas, compostas de lojas, três andares e águas-furtadas na Rua Áurea, propriedades confrontantes a norte com a Rua de São Julião, 114 e 115 antigos (155 e 161 modernos), a leste com a Rua Áurea, 7 a 15 antigos (17 a 37 modernos), e ao sul com a Rua dos Capelistas, 72 antigo (142 a 148 modernos). Os dois prédios foram vendidos ao banco por 50 contos de réis em dinheiro, mais 24 títulos, cada um de cinco ações ao portador do Banco de Portugal.

A escritura de 18 de agosto de 1890 foi feita pelo tabelião Jorge Camelier, à (Rua Áurea, 50, 1º andar). Como comprador, o Governador do Banco de Portugal, Antonio Augusto Pereira de Miranda. Como vendedor, Eduard John, procurador de Edmond Moreau e Paul Monchicourt, liquidatários do Comptoir d’Escompte de Paris, firma em liquidação, e dona dos prédios em questão. O da Rua dos Capelistas fora comprado pelo Comptoir ao Sr. Ernesto Victor Moraes Sarmento Bahia, e vendido ao Banco de Portugal por 25 contos de réis. O da Rua de São Julião comprado pelo Comptoir à Sra. Maria do Carmo Serzedelo Correa, e vendido ao Banco de Portugal por 31 contos de réis.

Igreja da Oliveirinha (Rua de São Julião, 140). Foto do autor.

7) A Rua Henriques Nogueira não existia quando Casimiro viveu em Portugal. Ela só foi aberta após o incêndio de 1863, exatamente para separar o novo prédio da Câmara do restante do bloco.

8) Em maio de 1993, sob condição de não fazermos fotos, e acompanhados do Sr. Eusébio Lourenço Alves, da Administração do Banco, fomos autorizados a visitar o interior da antiga igreja, ocupado àquela hora por um carro-forte de transporte de dinheiro. Nas paredes, viam-se ainda restos de antigos altares e púlpitos.

A Rua Henriques Nogueira, que fica quase em frente à atual janela que fora a porta de entrada da residência de Casimiro, só foi aberta após o incêndio de 1863. 

NOS PASSOS DE CASIMIRO EM LISBOA

1

Câmara Municipal

2

Igreja de São Julião

3

Altura da porta por onde entrava Casimiro. 

4

Monumento ao Rei D. José I

Para isolar o prédio da Câmara Municipal (teto cinza, defronte à Praça do Município), ao se reconstruir o quarteirão que o fogo destruíra em 1863, foi criada a pequena Rua Henriques Nogueira. Com isso, onde houvera um bloco, passou-se a ter dois. No local do segundo (teto quadrado e vermelho), é que existiu o prédio em que Casimiro teria trabalhado com seu tio Joaquim José, e eventualmente morado com este e a esposa deste, Maria Amália.

Ao lado, ocupando a totalidade do quarteirão formado pelas ruas Áurea, do Comércio, de São Julião, e Largo de São Julião, vê-se a sede do Banco de Portugal. A parte da frente (até à torre sineira), é agora o “Museu do Dinheiro”, e corresponde à antiga Igreja de São Julião, em que Casimiro, em 1855, assistiu a dois casamentos de membros da família: em 17 de junho, ao da irmã Maria Joaquina com o tio Francisco José, e em 12 de agosto, ao do tio Joaquim José com Maria Amália Freire. Desta vez, uma das duas testemunhas da cerimônia religiosa foi o pai de Casimiro, enquanto a segunda foi ninguém menos que o cultíssimo e todo poderoso Rodrigo da Fonseca Magalhães, “do Conselho de Sua Majestade e do Estado, Ministro Secretário de Estado dos Negócios do Reino”.

Na outra parte, além da torre sineira, é que se achava o antigo no 66, ou seja, a porta de entrada que Casimiro utilizava. Depois de 1859, ela passou a ter o no 164, foi fechada pela administração do Banco de Portugal, e transformada em janela com grades ― a terceira à direita da porta de no 170 da Rua do Comércio.

Terminando, acrescentamos que Casimiro conheceu o magistral monumento ao Rei D. José I, obra do grande Machado de Castro, colocada no centro da Praça do Comércio desde 1775. Mas do magnífico Arco da Rua Augusta, que fica defronte ao citado monumento, pôde ver somente a primeira fase da sua construção.

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