IMPRIMA O ARTIGO

NO LAR

Foi somente após o seu retorno ao Brasil, pondo fim a uma estada de três anos e meio em Portugal, que Casimiro revelou-se o imenso poeta que nos legou obras primas como a que aqui se vai ler. (Atenção: Surgiu um fato novo, e de tal importância, que nos levou à criação da “Nota complementar” que se encontra logo após os “Comentários”)

NO LAR.

Terra da minha pátria, abre-me o seio

                  Na morte – ao menos . . . . . .

                                                      Garrett

I.

Longe da pátria, sob um céu diverso

Onde o sol como aqui tanto não arde,

Chorei saudades do meu lar querido

– Ave sem ninho que suspira à tarde. –

No mar – de noite – solitário e triste

Fitando os lumes que no céu tremiam,

Ávido e louco nos meus sonhos d’alma

Folguei nos campos que meus olhos viam.

Era pátria e família e vida e tudo,

Glória, amores, mocidade e crença,

E, todo em choros, vim beijar as praias

Por que chorara nessa longa ausência.

Eis-me na pátria, no país das flores,

– O filho pródigo a seus lares volve,

E concertando as suas vestes rotas,

O seu passado com prazer revolve! –

Eis meu lar, minha casa, meus amores,

A terra onde nasci, meu teto amigo,

A gruta, a sombra, a solidão, o rio

Onde o amor me nasceu – cresceu comigo.

Os mesmos campos que eu deixei criança,

Árvores novas… tanta flor no prado!…

Oh! como és linda, minha terra d’alma,

– Noiva enfeitada para o seu noivado! –

Foi aqui, foi ali, além… mais longe,

Que eu sentei-me a chorar no fim do dia;

– Lá vejo o atalho que vai dar na várzea…

Lá o barranco por onde eu subia!…

Acho agora mais seca a cachoeira

Onde banhei-me no infantil cansaço…

– Como está velho o laranjal tamanho

Onde eu caçava o sanhaçu a laço!…

Como eu me lembro dos meus dias puros!

Nada m’ esquece!… e esquecer quem há-de?…

– Cada pedra que eu palpo, ou tronco, ou folha,

Fala-me ainda dessa doce idade!

Eu me remoço recordando a infância,

E tanto a vida me palpita agora

Que eu dera oh! Deus! a mocidade inteira

Por um só dia do viver d’outrora!

E a casa?… as salas, estes móveis… tudo,

O crucifixo pendurado ao muro…

O quarto do oratório… a sala grande

Onde eu temia penetrar no escuro!…

E ali… naquele canto… o berço armado!

E minha mana, tão gentil, dormindo!

E mamãe a contar-me histórias lindas

Quando eu chorava e a beijava rindo!

Oh! primavera! oh! minha mãe querida!

Oh! mana! – anjinho que eu amei com ânsia –

Vinde ver-me, em soluços – de joelhos –

Beijando em choros este pó da infância!

II.

Meu Deus! eu chorei tanto lá no exílio!

Tanta dor me cortou a voz sentida,

Que agora neste gozo de proscrito

Chora minh’alma e me sucumbe a vida!

Quero amor! quero vida! e longa e bela

Que eu, Senhor! não vivi – dormi apenas!

Minh’alma que s’expande e se intumesce

Despe o seu luto nas canções amenas.

Que sede que eu sentia nessas noites!

Quanto beijo roçou-me os lábios quentes!

E, pálido, acordava no meu leito

– Sozinho – e órfão das visões ardentes!

Quero amor! quero vida! os lábios ardem…

Preciso as dores dum sentir profundo!

– Sôfrego a taça esgotarei dum trago

Embora a morte vá topar no fundo.

Quero amor! quero vida! Um rosto virgem,

– Alma de arcanjo que me fale amores,

Que ria e chore, que suspire e gema

E doure a vida sobre um chão de flores.

Quero amor! quero amor! – Uns dedos brancos

Que passem a brincar nos meus cabelos;

Rosto lindo de fada vaporosa

Que dê-me vida e que me mate em zelos!

Oh! céu de minha terra – azul sem mancha –

Oh! sol de fogo que me queima a fronte,

Nuvens douradas que correis no ocaso,

Névoas da tarde que cobris o monte;

Perfumes da floresta, vozes doces,

Mansa lagoa que o luar prateia,

Claros riachos, cachoeiras altas,

Ondas tranquilas que morreis na areia;

Aves dos bosques, brisas das montanhas,

Bem-te-vis do campo, sabiás da praia,

– Cantai, correi, brilhai – minh’alma em ânsias

Treme de gozo e de prazer desmaia!

Flores, perfumes, solidões, gorjeios,

Amor, ternura – modulai-me a lira!

– Seja um poema este ferver de ideias

Que a mente cala e o coração suspira.

Oh! mocidade! bem te sinto e vejo!

De amor e vida me trasborda o peito…

– Basta-me um ano!… e depois… na sombra…

Onde tive o berço quero ter meu leito!

Eu canto, eu choro, eu rio, e grato e louco

Nos pobres hinos te bendigo, oh! Deus!

Deste-me os gozos do meu lar querido…

Bendito sejas! – vou viver c’os meus!

Indaiaçu – 1857.

COMENTÁRIOS

Seguramente composto entre 10 de julho e 10 de setembro de 1857, período em que, após a sua volta de Portugal, Casimiro permaneceu na fazenda do pai, no Indaiaçu, este poema foi mantido inédito por pelo menos dois anos, até à primeira semana de setembro de 1859, quando surgiu no livro Primaveras. Trata-se, todos concordam, de uma verdadeira obra prima, de um dos mais belos poemas da língua portuguesa em todos os tempos. Vejam, por exemplo, o que dele disse o grande Pedro Luís, no Correio Mercantil de 19 de março de 1860:

“O coração aí está todo inteiro.”, “São desses versos que se leem com os olhos úmidos.”, “Tudo é belo aí; as reminiscências aparecem em borbotões e a alma se refaz nessa viagem pelo campo do passado.”, “Quem poderá ler estes versos de Casimiro de Abreu, sem sentir um estremecimento no coração?”

Deve ser dito porém que, embora o tenha datado de “Indaiaçu– 1857.”, ao compor o poema, Casimiro estava a referir-se não apenas àquele ponto do mapa, o Indaiaçu, mas a toda uma vasta região em que se achava o palco de seus dias de menino. Daí que empregue uma imagística abrangente, que comporta tudo aquilo que ele vira na infância: não apenas o mar, o rio, os riachos e a lagoa, mas também as florestas, as altas cachoeiras, e até mesmo uma gruta que muitos estranharam, por não terem-na podido situar com precisão. A propósito, transcrevo um trecho do meu artigo “Paisagens infantis de Casimiro”, com que abro o livro Casimiro de Abreu – Correspondência completa, publicado em 2007 pela Academia Brasileira de Letras:

“O cenário em que se desenrola a infância de Casimiro é mais amplo do que sempre se supôs. Ele inclui Rio das Ostras (onde o poeta teria nascido, a julgar pelos muitos e fortes indícios que existem), Barra de São João (onde foi batizado, alfabetizado, e sepultado ao lado do pai), Indaiaçu, hoje a cidade de Casimiro de Abreu (que ele frequentou, e onde morreu em 18 de outubro de 1860), além de alguns lugares da antiga e vizinha Freguesia de Nossa Senhora do Amparo de Correntezas, em Capivari, hoje Silva Jardim (RJ), como Rio do Ouro (onde ficava a fazenda da mãe), Corridos (onde vivia o tio paterno Claudino Antônio Marques de Abreu), Madruga (dentro da atual Reserva Biológica Nacional de Poço das Antas, onde viviam a avó materna, Joaquina das Neves Silva e Pinto, e o tio materno, Manuel Joaquim Pinto Osório) e o deslumbrante Salto d’Água, onde vivia o outro tio materno, José Joaquim Pinto Osório, e onde existe uma tranquila e bela cachoeira, provavelmente a mesma em que, nos versos de “No lar”, o poeta disse haver-se banhado em seu cansaço infantil.”

(Publicado em Casimiro de Abreu – Obra completa, coedição da Academia Brasileira de Letras com G. Ermakoff Casa Editorial, Rio de Janeiro, 2010)

NOTA COMPLEMENTAR

Tão logo este blog entrou no ar, o atual proprietário da “Fazenda Casimiro de Abreu”, Mauro Goulart, me contatou, me transmitiu seu apoio, e deixou transparecer a intenção de colaborar com meu trabalho em torno da vida e da obra de Casimiro, que ele também admirava. E tendo eu, para sua surpresa, lhe revelado que já o conhecia de uma visita que fizera à sua fazenda havia mais de 30 anos, restabelecemos de imediato o clima de amizade que o tempo mantivera inalterado.

Um mês mais tarde, quando incluí aqui o poema “No lar”, foi a vez de Mauro Goulart me surpreender, me enviando algumas fotos, e dois vídeos que ele acabara de realizar, verdadeiros presentes de reis magos que a partir de agora passarão a ilustrar e enriquecer este blog.

Somando dois minutos e meio, esses vídeos constituem um momento definidor e definitivo em minhas pesquisas, pois contêm informações fundamentais no que se refere à infância de Casimiro. Quando, por exemplo, se fica sabendo que o córrego que corria sob a casa ia cair em forma de cachoeira alguns metros à frente, logo se entende que era ali que o poeta se banhava em seu cansaço infantil, e não em Salto d’Água, como cheguei a sugerir algumas linhas acima. Do mesmo modo, se vê que era ali bem perto, nos porões da casa, que se achava a misteriosa gruta citada por Casimiro, e jamais localizada por estudiosos ou moradores das plagas ao redor.

Realizados com visível esforço físico e total desconforto, já que para filmá-los Mauro Goulart precisou caminhar de joelhos por dentro da “gruta”, os dois vídeos representam, quando associados aos versos de “No lar”, a incontestável prova de que era ali, nessa casa e nesse chão, que ficava a sede da “Fazenda do Indaiaçu”, que por quase duas décadas, de algum ano posterior e próximo a 1841 até 1863, pertenceu a José Joaquim Marques de Abreu e a seus herdeiros naturais.

Relembrando, digo que foi no dia 8 de janeiro de 1992 que estive na “Fazenda Casimiro de Abreu”. Fui recebido pelo proprietário, Dr. Rogério Goulart, e por seu filho Mauro, que gentilmente me mostrou alguns locais do cenário, destacando certos pontos de maior interesse, como a saída do córrego que corria sob a casa e que segundo ele, em tempos idos, caía em cachoeira alguns metros à frente.

Dessa visita, que se limitou à parte externa da fazenda, eu trouxe exatamente o que fora lá buscar, ou seja, uma carga de energia positiva, coisa mais do coração que dos olhos, algo a que o futuro biógrafo de Casimiro aspirava como um talismã secreto, um sentimento que o fortalecesse na longa e trabalhosa estrada que começara a trilhar. Afinal, fazia apenas oito meses que eu dera início às pesquisas em torno da vida e da obra do autor de Primaveras.

Decorridos tantos anos daquela visita, e vendo agora esses vídeos comoventes que põem úmidos meus olhos, me vem à mente uma frase de Mário Quintana, que Casimiro, menino caçador de borboletas, iria certamente rejeitar: “O segredo é não correr atrás das borboletas… É cuidar do jardim para que elas venham até você.”

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