IMPRIMA O ARTIGO

UM SUPOSTO ORIGINAL DE "PRIMAVERAS"

O escritor e acadêmico alagoano Goulart de Andrade (1881-1936) chegou a anunciar a existência de um original do livro Primaveras. Verificou depois tratar-se de uma cópia. Apesar disso, é uma relíquia que merece ser preservada.

Há muito se fala na existência de um caderno que conteria o manuscrito do livro Primaveras. Por volta de 1923, o escritor Goulart de Andrade, que por duas décadas ocupou na Academia Brasileira de Letras a cadeira no 6, cujo patrono é Casimiro, anunciou que levaria o valioso original para os arquivos daquela instituição. Depois, ao constatar que os prometidos autógrafos não passavam de uma cópia, dirigiu a seus pares uma carta, datada de 10 de janeiro de 1924, onde pede que se esqueça a promessa que fizera. O escritor, ao que tudo indica, andara às voltas com o mesmo documento que estudaremos aqui.

Foi o professor Maximiano de Carvalho e Silva, profundo conhecedor e incansável divulgador da obra de Casimiro, o primeiro que, em 1991, nos falou dessa relíquia, que ele próprio, seguindo indicações de Melo Nóbrega, pudera consultar. Quatro anos mais tarde, pudemos também nós examinar o referido caderno, pertencente ao Dr. João Sérgio Marinho Nunes, que o herdara de seu pai, Dr. Reginaldo Fernandes Nunes, falecido em 14 de maio de 1979.

Ocorreu porém que, por inexperiência, não nos preparamos devidamente para a oportunidade que nos fora oferecida, e só pudemos realizar uma análise apressada do citado documento. Diante disso, e depois de remoermos por seis anos a frustração da primeira tentativa, entramos em contato com o Dr. Marinho Nunes, e lhe pedimos uma segunda oportunidade, que ele, gentil e paciente como da primeira vez, nos concedeu.

Foi no dia 20 de junho de 2001 que voltamos ao seu escritório de advocacia, no centro do Rio de Janeiro, a fim de examinar de novo o instigante e curioso caderno. Desta feita, com todo cuidado, por mais de três horas, estudamos e comparamos os manuscritos ali contidos, com fotocópias de muitos outros do próprio Casimiro. Além do conhecido livro de Arnaldo Nunes, Autógrafos de Casimiro de Abreu (Separata do vol. no IX da Revista da Academia Fluminense de Letras, Niterói, 1956), usamos como referência alguns autógrafos do poeta que, em fotocópias avulsas, leváramos conosco.

O caderno em questão tem capa dura, na cor avermelhada, mede 16,5 cm de altura por 11,5 de largura, e sua espessura é de um centímetro. Tem 164 folhas numeradas, além de um índice ao final. Traz apenas 58 dos 71 poemas que compõem o livro Primaveras, sendo que os seis últimos (“À morte de Messeder”, “Berço e túmulo”, “Infância”, “A uma platéia”, “Uma história” e “Cena íntima”) ficaram sem títulos, provavelmente à espera de que o copista os desenhasse mais tarde, já que os outros 52 (inclusive o primeiro deles, o poema-dedicatória “A”), têm os títulos escritos em letras góticas.

Logo no início, colado a uma das folhas protetoras, há um pequeno cartão de visitas de “Augusto Leite de Castro – Rua General Caldwell no 150”, onde estão escritas as seguintes palavras:

“Ao bom Amigo e Primo Dr. Julio Novaes.

Guiomar S. Ferreira de Castro e

Augusto Leite de Castro

offerecem esta insignificante lembrança.

Mendes. 5-XII-922”

Na folha seguinte, ao lado, outra dedicatória:

“Ao mui ilustre amigo Dr. Reginaldo Nunes

Com um cordial abraço de

Valentim Bouças

Rio. 1963”

No topo do verso da folha em que aparece a dedicatória acima, se vê, em tinta muito envelhecida, um nome manuscrito que, significativamente, poderia ser “Manduca”, apelido familiar de uma pessoa íntima de Casimiro. Logo abaixo, vêm as seguintes palavras:

“O finado Vigário da Lapa de Capivary deu-me de mimo, há annos, o presente manuscripto garantindo-me ser do proprio punho de Casimiro de Abreu, o que me foi confirmado por pessoa insuspeita que conviveu com o saudoso poeta. Hoje offereço o mesmo autographo ao illustrado Amigo Sr. Guilherme Briggs, como signal de muito apreço.      

Nictheroy, 28 de Janeiro de 1893.

Dr. Carlos Antonio Halfeld.

P.S. O Vigario de Capivary, Pe Antonio José de Freitas foi distincto por suas virtudes e illustração.”

Na página seguinte, onde se lê em alto relevo “Biblioteca Valentim Bouças. 1526. Data 28/4/54”, aparece em letras góticas:

Primaveras

por

Cazimiro J. M. Abreu

Logo abaixo, em letras miúdas, manuscritas:

“Heureux ceux que n’ont point vu la fumée

des fêtes de l’etranger et que ne se sont assis

qu’au festins de leur pères.

Chateaubriand.”

Só então, na folha seguinte, começam as cópias dos poemas. São eles: “A”, “Canção do exílio”, “Minha terra”, “Saudade”, “Canção do exílio (Meu lar)”, “Minha mãe”, “Rosa murcha”, “Juriti”, “Meus oito anos”, “No álbum de J.C.M.”, “No lar”, “Moreninha”, “Na rede”, “A voz do Rio”, “Sete de setembro”, “Poesia e amor”, “Orações”, “Bálsamo”, “Deus”, “Primaveras”, “Juramento”, “Perfumes e amor”, “Segredos”, “Clara”, “A valsa”, “Borboleta”, “Quando tu choras”, “Canto de amor”, “Violeta”, “O que?”, “Sonhos de virgem”, “Assim!”, “Quando?”, “Sempre sonhos”, “O que é simpatia”, “Palavras ao mar”, “Pepita”, “Visão”, “Queixumes”, “Amor e medo”, “Perdão”, “Mocidade”, “Noivado”, “De joelhos”, “Três cantos”, “Ilusão”, “Sonhando”, “Lembrança”, “O baile”, “Minh’alma é triste”, “Palavras a alguém”, “Folha negra”. A estes 52, seguem-se os seis poemas que ficaram sem títulos, resultando no total de 58 que apontamos algumas linhas acima.

Pois bem. Se no primeiro exame do caderno já havíamos ficado quase certos de que os poemas nele contidos não eram autógrafos de Casimiro, no segundo não tivemos mais dúvidas. Quem os copiou, contudo, era pessoa de bom nível cultural, já que os textos em francês estão corretos, ainda que apresentem uma enorme quantidade de incorreções (melhor seria vê-las como distrações) em língua portuguesa. E são exatamente essas distrações que acabam denunciando que as cópias não foram feitas por Casimiro: o próprio autor raramente “copia” seus versos, pois quase sempre os tem de memória, não precisando lê-los “com os olhos”, pois ele os “lê” mentalmente. Não por acaso, o autor é considerado um péssimo revisor de seus próprios trabalhos.

Como explicar, por exemplo, que Casimiro errasse de maneira tão absurda a cópia dos dois primeiros versos do poema “Minha terra”, que aparecem no caderno como “Todos cantão a sua terra, / Tambem cantar a minha,”, com acréscimo de um artigo e a omissão de uma forma verbal? Mais adiante, no mesmo poema, a quarta estrofe, que no livro Primaveras é

“Não, não tem, que Deus fadou-a

D’entre todas a primeira:

Deu-lhe esses campos bordados,

Deu-lhe os leques da palmeira,”

está assim no caderno estudado :

“Não, não tem, que Deus fadou-a

D’entre todas a primavera

Deu-lhe esses campos bordados

Deu-lhe os leques de palmeiras”

Como admitir que Casimiro trocasse “primeira” por “primavera”, e “da palmeira” por “de palmeiras”? Pior: como entender que na sétima estrofe, onde o certo é:

“Foi alli que n’outro tempo

A’ sombra do cajazeiro

Soltava seus doces carmes

O Petrarca brasileiro;

E a bella que o escutava

Um sorriso deslisava

Para o bardo que pulsava

Seu alaúde fagueiro.”

o próprio Casimiro, trocando “cajazeiro” por “cajueiro”, “Petrarca” por “patriarca”, e “Seu alaúde” por “Sem alaúde”, tivesse copiado:

“Foi alli que n’outro tempo

A sombra do cajueiro

Soltava seus doces carmes

O patriarcha Brasileiro

E a bella que o escutava

Um sorriso deslisava

Para o bardo que pulsava

Sem alaúde fagueiro”

Poderíamos apontar uma extensa lista de erros, arrependimentos e lapsos que notamos no citado caderno. Damos apenas mais três exemplos: 1o) no poema “Rosa murcha”, além de “Portugal” estar escrito com “p” minúsculo, o copista “comeu” a penúltima estrofe do poema; 2o) o título do trabalho “Lembrança” está no plural, e grafado “Lelbranças”, enquanto o verso “Se nas ondas da vida” converteu-se em “Eu nas ondas da vida”; 3o) no poema pela morte de Messeder, no verso “Eu que fui teu amigo inda na infancia,” a palavra “inda” foi omitida; no verso seguinte, “fragrância” virou “fragancia”, enquanto no penúltimo verso, “Dorme tranquillo á sombra do cypreste…”, “comeu-se” a expressão “à sombra”, deixando a frase reduzida a “Dorme tranquillo do cypreste…”.

Dificilmente o próprio autor se distrairia a tal ponto. Sobretudo Casimiro, que era extremamente zeloso no que se referia à apresentação de seus versos, não economizando críticas aos que atentassem contra a correção dos mesmos.

Há dois pontos, finalmente, que nos parecem de grande valia para atestar que os textos do caderno são apócrifos. O primeiro, é a caligrafia. Ali, aparecem três letras maiúsculas que são muito diferentes das respectivas letras do autor de Primaveras: o “J”, o “P”, e o “O”. Sobretudo a última, que em Casimiro não era nunca uma circunferência perfeita, pois na maior parte das vezes ele puxa a perna do “O” para dentro do círculo, quase que dividindo a circunferência em duas partes, ainda que às vezes a deixe inconclusa, aberta, em espiral. No caderno, ao contrário, o O maiúsculo é sempre, invariavelmente uma circunferência perfeita, embora tombada para a direita, em forma de letra itálica.

O segundo ponto a que nos referimos, diz respeito à segunda canção do exílio, que aparece no caderno com o título de “Canção do exílio (Meu lar)”, indicando claramente que foi copiada de alguma edição posterior a 1870, quando o poeta já contava mais de dez anos de morto. Basta abrir as quatro primeiras edições de Primaveras (Rio de Janeiro, 1859; Lisboa, 1864; Porto, 1866; Lisboa, 1867), para se verificar que, nelas, as duas canções do exílio têm idêntico título, “Canção do exílio”, sem qualquer distinção entre uma e outra. A expressão “Meu lar” só passou a ser usada nos anos 70 do século XIX, quando Joaquim Norberto de Sousa e Silva organizou as Obras Completas de Casimiro J. M. de Abreu, que B. L. Garnier publicou por muitos anos em sucessivas tiragens.

O próprio Norberto, assumindo a arbitrariedade da decisão que tomara, diz isso claramente na nota no 6, que vem à página 107 da primeira edição, de 1871, impressa em Paris na Tipografia Portuguesa de Simão Raçon e Companhia. Diz ele lá:

“Duas das poesias do livro I, a I e IV, têm o mesmo título Canção do exílio, que Gonçalves Dias deu também a uma das suas mais populares produções. O título de Canções do exílio, cabe melhor à primeira parte do I livro nesta edição, ficando as poesias com as denominações de Exílio e Meu lar.”

Terminando, lembraríamos que, preguiçoso como ele mesmo se retratava, dificilmente Casimiro se disporia a copiar uma grande quantidade dos próprios poemas; sobretudo com títulos desenhados, em letras góticas. Por isso, e pelo mais que expusemos, afirmamos com segurança que o caderno em questão não contém autógrafos de Casimiro, o que não impede que se possa considerá-lo uma relíquia; não só por sua antiguidade e características, mas por ter pertencido ao Vigário Antônio José de Freitas, que de fato conviveu com parentes maternos de Casimiro, e que este, ao que tudo indica, chegou a conhecer.

Gostaríamos, por fim, de registrar o nosso reconhecimento ao Dr. João Sérgio Marinho Nunes; não só pela gentileza demonstrada nas ocasiões em que a ele recorremos, mas também por seu amor à verdade, ao nos pedir que lhe falássemos com toda franqueza sobre as nossas conclusões. Fomos honestos com ele. Dissemos-lhe que o caderno não continha autógrafos de Casimiro, que se tratava, isso sim, de uma cópia feita por terceiros. Dissemos-lhe mais, que pretendíamos, em data futura, publicar um artigo em que exporíamos as nossas impressões. Ele não se mostrou contrariado, alegando que o importante era a verdade dos fatos. Até porque, disse, não via o caderno como valor monetário, mas como uma relíquia de família que guardava com carinho.

Rio de Janeiro (RJ), 12 de outubro de 2008.

(Publicado pela primeira vez na Revista Brasileira, Academia Brasileira de Letras, Fase VII, outubro-novembro-dezembro 2008, Ano XV, no 57, páginas 123 a 130.)

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