Casimiro morreu com menos de 22 anos. E apesar das barreiras morais e dos empecilhos familiares e profissionais que enfrentou em tão breve existência, legou à posteridade um belo livro, Primaveras, um dos ícones da nossa literatura. Neste artigo, os leitores poderão seguir a trajetória do imortal poeta, da sua infância à sua morte em 18 de outubro de 1860.
Filho de José Joaquim Marques de Abreu, português de Vila Nova de Famalicão, e de Luísa Joaquina das Neves, brasileira da cidade do Rio de Janeiro, Casimiro (José Marques) de Abreu nasceu em 4 de janeiro de 1839 na extinta Freguesia da Sagrada Família do Rio São João, uma das quatro que de início formavam o gigantesco município de Macaé criado em 1813.
Ocorre que, no dia 15 de setembro de 1859, uma semana após Casimiro haver publicado o livro Primaveras, a sua freguesia natal, cuja área correspondia à soma dos atuais municípios de Casimiro de Abreu e Rio das Ostras, desligou-se de Macaé e se transformou no município de Barra de São João. E como aconteceu de o poeta falecer a 18 de outubro do ano seguinte, dele se pode dizer que nasceu macaense e morreu sanjoanense.
Ocorre também que, 66 anos depois, em 10 de novembro de 1925, a sede do município de Barra de São João foi transferida para o segundo de seus distritos, o Indaiaçu, que alguns dias depois mudou seu nome para Casimiro de Abreu, em homenagem ao poeta que ali vivera dias felizes, ali escrevera alguns de seus melhores poemas, e ali cerrara os olhos para sempre. Com isso, da condição de sede, Barra de São João passou à de primeiro distrito do município.
Ocorre por fim que, 133 anos mais tarde, em 10 de abril de 1992, Rio das Ostras também se emancipou, separando-se de Casimiro de Abreu (RJ). E como há vários e fortes indícios de que o poeta tenha nascido em terras pertencentes ao atual município de Rio das Ostras, é bem possível que um dia, se surgir alguma prova irrefutável que o confirme, se diga que Casimiro nasceu macaense, morreu sanjoanense, e no rolar dos tempos converteu-se em riostrense.
Casimiro passou metade da vida no vale do São João: de 4 de janeiro de 1839, data em que veio ao mundo, ao dia 15 de julho de 1849, quando, com dez anos e sete meses e levado pelo pai a bordo do patacho Fluminense, embarcou para o Rio de Janeiro. Dali, dias depois, já comprado e despachado o enxoval de aluno interno, seguiu para ingressar no Instituto Colegial de Nova Friburgo, que o inglês João Henrique Freese havia fundado naquele local em 1841.
Casimiro ali passou os quatro melhores anos da vida, do segundo semestre de 1849 ao primeiro de 1853. Não foi aluno brilhante, desses que ostentam medalhas de ouro, mas também não fez feio. Recebeu quase sempre seus prêmios em livros, e em duas ocasiões, 1850 e 1852, ganhou medalhas de bronze. Aliás, a julgar pela diversificada cultura humanística que exibe em seus textos, se pode dizer que ele soube aproveitar regiamente os seus dias de estudante.
Desse tempo, há bons amigos que merecem ser citados, como o professor Cristóvão Vieira de Freitas (o “Freitinhas”), e Cristóvão Corrêa e Castro, aos quais Casimiro dedicou a cena dramática Camões e o Jau, que levou à cena e publicou em Lisboa em 1856. Há também o malsinado friburguense Afonso de Azeredo Coutinho Messeder, cuja morte em Niterói, em maio de 1858, inspiraria ao poeta uma pungente obra-prima. E há Pedro Luís Pereira de Sousa, a quem Casimiro ficou devendo o mais impactante elogio ao seu livro Primaveras. E há sobretudo Francisco do Couto Sousa Júnior, de Porto das Caixas, que viria a tornar-se o maior dos confidentes do poeta após a sua volta ao Brasil.
Findo o primeiro semestre de 1853, o destino procurou por Casimiro para dar-lhe uma rasteira. Não; nada de prosseguir nos estudos, nada de cursar Direito em São Paulo. Teria de desgarrar-se da turma e, para atender a imposições de família, viajar para Portugal acompanhando o tio Manoel José, gravemente enfermo. Os demais parentes iriam depois, logo que fossem fechadas as contas de liquidação da firma Abreu & Irmãos, fundada em 19 de outubro de 1850 pelos três Marques de Abreu: José Joaquim, Francisco José, e o citado Manoel José.
Aqui, abro um parêntese para explicar os antecedentes do episódio que mudou a trajetória de Casimiro, cuja biografia só se torna possível se a pusermos lado a lado com a do pai. E o caso é que este, José Joaquim Marques de Abreu, era parte indispensável de um esquema de tráfico de escravos que passava por Carvalho & Rocha, firma à Rua de São Pedro, 65, na Corte. O pai do poeta desembarcava os africanos junto ao Morro do Limão, em Rio das Ostras. Era ali que ele tinha a sua casa de comércio, embora tivesse outra no arraial de Barra de São João, nove quilômetros ao sul, dirigida pelo irmão Francisco José.
José Joaquim era inteligente, perspicaz, desconfiado. Sabendo como poucos guardar segredo, detinha o grau de Mestre na Loja Maçônica Comércio e Artes, a mesma a que haviam pertencido D. Pedro I e José Bonifácio, a mais antiga e forte das que havia no país. Avisado com antecedência de que o governo preparava uma dura lei para golpear mortalmente o comércio negreiro, pulou do barco e foi para a Corte. Ali, fundou a firma Abreu & Irmãos, entregando-a à administração dos irmãos e sócios Francisco José, que vivia há muitos anos no Brasil, e Manoel José, financista habilidoso, que chegara depois.
Era, diga-se de passagem, uma sábia tentativa de ampliar os negócios, ao mesmo tempo em que se adaptava à era pós-tráfico que começava a delinear-se entre nós. Desse modo, ele permaneceria no vale do São João, onde àquela altura já possuía terras e obtinha boas safras de café, e dali enviaria à firma na Corte, não apenas os grãos que ele próprio produzisse, mas também os dos demais fazendeiros das glebas vizinhas, que ele, de longa data, conhecia muito bem.
A propalada lei, que recebeu o no 581 e ficou conhecida como Lei Eusébio de Queirós, foi assinada a 4 de setembro de 1850. Decorridos alguns dias, temendo talvez denúncias, represálias, ou até mesmo uma queima de arquivo, o sagaz José Joaquim correu a um cartório da Corte e, no dia 27, tendo por testemunhas os dois irmãos já citados, perfilhou os filhos Casimiro José, Maria Joaquina e Albina Teresa, que na condição de solteiro tivera com Luísa Joaquina das Neves. Estranhamente, porém, manteve o fato em segredo, não o revelando nem mesmo a Casimiro, que sofria amargamente por ser filho ilegítimo, e que só veio a saber que fora reconhecido após a morte do pai, quando ele próprio estava a menos de seis meses de despedir-se da vida.
Seria um erro, no entanto, se nos puséssemos a demonizar a figura de José Joaquim. Afinal, não se tratava de um bandido, de um velhaco. Era apenas um homem de ação à cata de lucros, e o tráfico de escravos era o melhor negócio que existia sob o sol. E mais: homens como ele eram vistos por parte da nossa elite como bons patriotas, gente de fibra que enfrentava a marinha britânica para abastecer de braços as fazendas brasileiras. E mais ainda: como cidadão, o pai de Casimiro pagava impostos e, como chefe de família, cuidava do futuro dos filhos, escolhendo para eles os melhores colégios. Não era sequer rechaçado. Ao contrário. Em documento da época, o vigário de Barra de São João o trata de “Ilustríssimo Senhor José Joaquim Marques de Abreu”.
Nada, contudo, impediu que três meses depois alguém o denunciasse por sua atividade clandestina. Diante disso, em fevereiro de 1851, Eusébio de Queirós, Ministro da Justiça e autor da temida lei, enviou a Rio das Ostras o Chefe de Polícia da província fluminense, que tinha ordens expressas de demolir um barracão pertencente a José Joaquim, apreender os apetrechos por ele usados no tráfico, e transferi-los para o Arsenal de Marinha na Corte. Para coroar a punição, o pai do poeta ficava proibido de habitar o litoral, o que o forçava a fixar-se definitivamente nas terras que tinha junto ao rio Indaiaçu.
Quanto à firma Abreu & Irmãos, parece que, em seus dois primeiros anos, deu bons lucros. Eram frequentes os embarques de café, feijão e milho que partiam de Rio das Ostras rumo ao no 40 da Rua Nova de São Bento, na Corte, endereço oficial da empresa, que chegou a aventurar-se em lances de exportação e importação, o que não era para muitos. Porém, como se costuma dizer, o hábito do cachimbo faz a boca torta, e os três irmãos envolveram-se em transações duvidosas, que acabaram por levá-los a enfrentar alguns processos na Justiça, dois dos quais, bastante complicados.
As arrastadas questões judiciais, somadas à desgraça em que José Joaquim caíra junto às autoridades da província fluminense, à enfermidade que se abatera sobre o irmão Manoel José, tudo isso, aliando-se ao namoro que àquela altura já devia ter surgido entre Francisco José e a sobrinha Maria Joaquina, criando com isso a possibilidade de que, casando-se, pudessem viver no exterior, tudo isso, repito, deve ter induzido os Marques de Abreu à decisão de encerrar a sociedade que mantinham, liquidar a firma, que se convertera numa fonte de problemas, e mudarem-se todos para Portugal. Assim se decidiu, assim se fez. Casimiro, por sua juventude e capacidade, iria na frente, fazendo companhia ao tio enfermo.
Luísa Joaquina das Neves, mãe de Casimiro. (Coleção do autor.)
João Henrique Freese, fundador e diretor do Instituto Colegial de Nova Friburgo cobra e recebe as últimas despesas de Casimiro.
Pedro Luís Pereira de Sousa, colega de estudos em Nova Friburgo. Primeiro e maior impulsionador do livro Primaveras.
Eusébio de Queirós (Luanda, Angola, 1812 – Rio de Janeiro, 1868). Autor da Lei que extinguiu o tráfico de africanos escravizados.
Aqui, fecho o parêntese, e digo que Manoel José e Casimiro saíram do Rio de Janeiro a bordo do Olinda, no domingo de 13 de novembro de 1853. No poema “Rosa murcha” e no prólogo de Camões e o Jau, ele nos fala da amargura da partida:
“Com que dor tinha os olhos fitos naquelas paisagens soberbas que pareciam apagar-se pela distância! Quando deixei de ver as vagas enroladas baterem nos rochedos; quando as montanhas que se desenhavam ao longe, sumiram-se no horizonte, o pranto correu-me pelas faces, como nunca havia corrido. Eu chorava deveras como hoje suspiro saudoso, porque era a pátria que eu deixava; a terra onde nasci; porque lá ficava meu pai e minha mãe, meus irmãos, tudo que de mais caro tinha no mundo!”
Chegando à capital portuguesa a 7 de dezembro, Manoel José e o sobrinho se instalaram na Rua dos Capelistas, próximo à morada de Joaquim José Marques de Abreu, outro tio paterno de Casimiro. Foi esse o primeiro endereço que ele teve em Portugal. E ainda que não queira dispersar-me, pois pretendo me ater às atividades literárias de Casimiro, abro duas exceções. A primeira, para falar da Lisboa que ele encontrou. Deve ter sido a mesma que o Visconde Nogueira da Gama assim descreve em 12 de maio de 1855:*
“Não está estacionário o material da cidade: veem-se por toda parte magníficas edificações, assim públicas como particulares, e são já bem raras as ruas e praças que não sejam perfeitamente calçadas, algumas até com luxo, fingindo tapetes pela variedade de pedras de diversas cores, de que abunda o país. A cidade é bem limpa e policiada; mas, sua iluminação a gás é inferior à do Rio de Janeiro, e a alguns outros respeitos está Lisboa muito abaixo daquela capital; por exemplo: ainda não tem outra água senão a dos seus antigos chafarizes, alguns bem curiosos como obras d’arte; todo o transporte de cargas pelas ruas é ainda feito, a pau e corda, pelos galegos, e por carros de bois, de eixo móvel, tão toscos e pesados como os dos pontos mais atrasados das nossas províncias.”
A segunda exceção, é para deixar registrado: que os pais e as irmãs de Casimiro, mais Francisco José, saíram do Rio em 30 de abril de 1854, chegando a Lisboa a 30 de maio; que Manoel José morreu em Lisboa em fevereiro de 1855; que José Joaquim comprou a Quinta do Ulmeiro, em São Pedro de Penaferim, na deslumbrante região de Sintra, onde deve ter vivido com Luísa nos 15 meses e pouco que permaneceram em Portugal; que em 17 de junho de 1855, em Lisboa, Francisco José casou-se com a sobrinha Maria Joaquina, indo depois morar na cidade do Porto e, por último, que em 5 de setembro de 1855, os pais de Casimiro retornaram ao Rio de Janeiro, onde chegaram no dia 29. Voltaram rompidos, ou às vésperas de encerrar a relação de mais de 20 anos, deixando em Portugal a filha Maria Joaquina, casada, a filha Albina Teresa, interna no Colégio das Salésias, e o filho Casimiro, com os tios Joaquim José e Maria Amália. O tio, creio, conseguira empregá-lo na casa comercial em que ele próprio trabalhava.
Agora, tratando do Casimiro escritor, começo por dizer o que muitos já sabem; que foi em Portugal que se deu a sua estreia. E embora tenha sido como poeta que seu nome entrou na história da nossa literatura, foi com uma pequena peça teatral, a cena dramática Camões e o Jau, que ele se apresentou pela primeira vez ao público em Lisboa. Foi isso na noite de 18 de janeiro de 1856, no Teatro de D. Fernando, erguido no exato ponto em que existira a Igreja de Santa Justa, destruída pelo terremoto de 1º de novembro de 1755.
O pequeno teatro, de 12 metros por 8, fora projetado e construído pelo engenheiro francês Arnould Bertin, que tentando contornar as barreiras impostas pelo pouco terreno, dera à sala a forma elíptica. Iluminado a gás e ostentando um belo lustre central, o teatro, que dispunha de quatro ordens de camarotes forrados de carmesim, podia acomodar mais de seiscentas pessoas. Achava-se, além disso, ornado com pinturas de Rambois, Cinati, Rusconi e Ignácio Caetano, conhecidos e respeitados artistas da época.
Inaugurado em 29 de outubro de 1849, data natalícia do rei D. Fernando, o pequeno teatro não iria muito longe. Rejeitado, com deficiências, foi demolido dez anos depois. Teve, no entanto, seus dias de glória: contou às vezes com a presença do Rei D. Fernando, regente do trono, e de seus filhos, os futuros reis D. Pedro V e D. Luís, e recebeu grandes nomes da cena lusitana, a começar por Emília das Neves, que o inaugurou com Adriana Lecouvreur. Pouco a pouco, porém, transformou-se em teatro de variedades, passando a dedicar-se a peças leves, recitativos, espetáculos de curta duração.
Setembro de 1855 trouxera boas novas ao malfadado teatro. A função de ensaiador, equivalente à atual de diretor, fora entregue ao competente José Maria Braz Martins (1823-1872), famoso não só como ator e ensaiador, mas também como autor de várias peças, uma das quais, sobretudo, fazia enorme e duradouro sucesso, Gabriel e Lusbel ou o Taumaturgo, mais conhecida por Santo Antônio, ou também por Os milagres de Santo Antônio.
Segundo Casimiro, a composição de Camões e o Jau lhe fora sugerida pelo próprio Braz Martins, que interpretou Camões nas oito (ou mais) encenações que de janeiro a abril a peça teve em Lisboa, e nas quatro (ou mais) que, em setembro e outubro, teve no Real Teatro de São João, no Porto. Quanto ao papel do escravo Antônio, o Jau, seria interpretado por José Carlos dos Santos, o Santos Pitorra, que veio a tornar-se uma das glórias do teatro português, chegando a ser visto como o maior de seus atores do século dezenove.
Satisfeito com a generosa acolhida que a peça tivera, Casimiro tratou de publicá-la, cabendo a tarefa à tipografia de Antônio José Fernandes Lopes, na Travessa da Vitória, 52, a poucos metros do teatro em que estreara. Nela, eram impressas duas excelentes publicações com que o poeta passaria a colaborar, O Panorama e A Ilustração Luso-Brasileira. Providencialmente, para a edição de Camões e o Jau, Casimiro redigiu um “Prólogo”, datado de “Lisboa, 27 de Março de 1856.”, que serve não só como fonte de informações biográficas a seu respeito, mas também para mostrar que, além de bom poeta, era bom prosador.
A edição ficou pronta antes de 14 de junho de 1856, data em que A Ilustração Luso-Brasileira a anuncia a 100 réis o exemplar. Acrescente-se que, nesse dia, a citada revista trouxe ainda, à página 190, um poema de Casimiro, “O castigo”, cujo título, já no Brasil, ele mudaria para “Cena íntima” ao incluí-lo no seu livro Primaveras. Acrescente-se mais: que o pai do poeta, desta vez sem Luísa, chegara a Lisboa no dia 4, o que lhe permitiu ler o poema do filho no mesmo dia em que foi publicado, e ver também o anúncio da cena dramática, a cuja apresentação, acredito, assistiu em setembro-outubro na cidade do Porto.
Gravura mostrando o interior do Teatro de D. Fernando, onde foi apresentada a cena dramática de Casimiro.
Lisboa, Rua de Santa Justa: a Casa Pólux (prédio branco de oito andares ao fundo) marca o exato ponto em que existiu o Teatro de D. Fernando.
(Foto: @hannahmossdavies)
O célebre ator José Carlos dos Santos.
(Caricatura de Bordalo Pinheiro. Museu Rafael Bordalo Pinheiro, Lisboa.)
Se Casimiro houvesse escrito e publicado apenas Camões e o Jau, seu nome não chegaria até nós. Tendo embora muitos méritos, a pequena peça não seria suficiente para trazer-lhe prestígio e projetá-lo no futuro. Felizmente, nos anos que se seguiram, ele pôde revelar-se o genial poeta que se firmou para sempre entre os maiores que aqui nasceram, fazendo com que, posto ao lado da sua admirável obra poética, o seu texto de estreia ganhe nova dimensão.
O próprio Casimiro, aliás, parece ter desenvolvido uma certa rejeição por sua peça, como deixa transparecer na carta que, do Rio de Janeiro para São Paulo, escreve em 1o de abril de 1859 ao amigo Cristóvão Corrêa e Castro:
“Já em Lisboa em 1856 eu tinha publicado uma sensaboria a que ligara o teu nome como recordação saudosa da pátria e dos amigos; hoje realmente tenho vergonha de falar-te disso e só te mostrarei quando vieres.”
Quase dois meses após a estreia de Casimiro como autor teatral, ocorreu o que se pode chamar a sua estreia como contista. Foi a 12 de março, quando, pelas páginas d’O Progresso, de Lisboa, viu impresso o seu primeiro texto em prosa: a parte inicial do conto “Carolina”, cuja conclusão seria divulgada no dia seguinte no mesmo jornal. Só então é que se daria a sua verdadeira estreia como poeta, que se verificou em 19 de abril de 1856, em Lisboa, com a publicação do poema “Minha terra”, no no 16 do primeiro volume d’A Ilustração Luso-Brasileira.
Foi uma estreia de impacto. Decorridos mais de 150 anos, ainda nos enche de orgulho a altivez do nosso rapazinho a dizer aos quatro ventos, do outro lado do Atlântico, todos cantam sua terra, também vou cantar a minha. Com apenas 34 anos de independência, o Brasil ainda lutava para afirmar-se junto às outras nações. Nesse contexto, e falando em jargão moderno, “Minha terra” funcionou como uma bela peça de marketing. Cheios de ingênuo ufanismo, de mensagens pacifistas, e até mesmo de um pioneiro sentimento holístico, ecológico, seus versos poderiam perfeitamente servir de letra ao nosso hino nacional.
Também nos orgulha correr os olhos pela lista dos redatores na primeira página d’A Ilustração Luso-Brasileira. Casimiro tinha apenas 17 anos de idade, e lá está seu nome, misturado aos de brilhantes figuras da vida cultural portuguesa, como Alexandre Herculano, Latino Coelho, Bulhão Pato e Mendes Leal, para citarmos só quatro. Não era, convenhamos, façanha para muitos. E no entanto, seu nome lá ficou de 17 de maio a 4 de outubro de 1856, quando não apenas ele, mas todos os outros deixaram de ser citados.
Aliás, foi em 1856 que Casimiro publicou praticamente tudo que divulgou em Lisboa. Além de Camões e o Jau, de 12 de março a 27 de dezembro, ele deu a conhecer nada menos que 12 poemas e 2 contos. Dos poemas, 11 (Minha terra, Saudades, A rosa, Suspiros, Rosa murcha, Elisa, A vida, O castigo, A amizade, Os meus sonhos e Ilusão) saíram n’A Ilustração Luso-Brasileira, e “Lembras-te”, n’O Panorama. O conto “Camila”, que ficou inacabado, saiu n’A Ilustração Luso-Brasileira e “Carolina”, n’O Progresso. Em 1857, publicou apenas um poema, “Desejos”, n’O Panorama de 14 de fevereiro. Quatro meses depois, na companhia do pai, embarcou de volta ao Brasil, saindo de Lisboa no vapor inglês Avon em 14 de junho, e chegando ao Rio de Janeiro em 9 de julho.
Além do que divulgara pela imprensa portuguesa, Casimiro trazia alguns poemas inéditos, feitos nos meses que antecederam a decisão do retorno. Com eles, pensava abrir um livro de versos ─ Primaveras ─ que projetava publicar no Rio de Janeiro e, do qual, pasmem, já deixara autorizada uma nova edição a ser feita em Portugal, posterior à primeira, que queria ver impressa no Brasil. Dentre os inéditos, que se tornariam famosos, um, “Meus oito anos”, deixava bem à mostra o quanto a paisagem infantil havia-se entranhado no coração do poeta.
Premiado com uma temporada na fazenda paterna, no Indaiaçu, Casimiro pôde rever os lugares da infância, não só na freguesia da Sacra Família do Rio São João, ainda pertencente a Macaé, como na de Nossa Senhora do Amparo de Correntezas, em Capivari, hoje Silva Jardim (RJ). Nesta, cerca de 42 km distante do Indaiaçu, reencontrou a mãe e o meio-irmão Bonifácio, reviu seus tios e tias, primos e primas, inclusive José Antônio Pinto Osório, primo que amava como irmão e que morreria afogado um ano depois.
Dois meses ficou na roça. Reanimado pelo ar puro e pelos belos dias de julho e agosto no vale do São João, pôde fazer bons poemas, entre os quais uma primeira e pungente obra-prima, “No lar”, onde relembra os dias de menino, contrapondo-os às angústias por que passara na Europa: “Meu Deus! eu chorei tanto lá no exílio!” Agora, contudo, alimentava esperanças de dias melhores e se dobra agradecido aos pés do Criador: “Bendito sejas! ─ vou viver c’os meus!”
Casimiro se enganava. Com os pais separados e as irmãs em Portugal, não havia possibilidade de vida familiar. Além disso, terminada a temporada na roça, começara para ele um novo tempo de espinhos. Retornando ao Rio de Janeiro, aonde chegou em 10 de setembro, assumiu o emprego de caixeiro que seu pai lhe conseguira com o amigo e patrício Antônio Francisco da Costa Cabral, um dos três sócios de Câmara Cabral & Costa, firma de comissões de café à Rua Nova de São Bento, 37. Seria esse o principal endereço do poeta na Corte, entre a data citada e o dia 13 de junho de 1859. Despedido dali, empregou-se em agosto com João Baptista Leite & Cia, no no 195 da Rua da Quitanda.
Era dura a vida de caixeiro, como se vê por este trecho da palestra feita em 30 de outubro de 1925 na Associação dos Empregados do Comércio, no Rio de Janeiro, onde o autor, Jacinto Magalhães, aborda exatamente a fase a que aqui nos reportamos:
“Há 60 ou 70 anos passados, a condição de caixeiro só se distinguia da do escravo pelo fato de perceber um mísero ordenado ─ cinco mil réis por mês para começar ─ e poder fugir quando lhe não fosse mais possível aturar as brutalidades do patrão. Quanto à liberdade, tinha dois dias por ano ─ perdão! ─ dois dias é um modo de falar, duas tardes é o que era ─ dia de N. S. da Glória e do Natal. No mais, aquilo era uma escravidão disfarçada, a contrastar com a escravidão legal que campeava em todos os seus horrores.”
O próprio Casimiro o confirma em carta de 1º de abril de 1858 ao amigo Francisco do Couto Sousa Júnior, de Porto das Caixas:
“─ Falas-me em ir passar dois dias contigo, mas olha que é quase impossível. Não fazes ideia como vivo apertado: eu durmo aqui na casa do patrão, o escritório abre-se mesmo aos domingos até ao meio-dia e não posso ausentar-me. Quando eu vou ao teatro, é uma campanha, há sempre barulho, porque eles não querem que eu durma fora.”
Bem ou mal, contudo, e ainda que lhe custasse um preço em dissabores, conseguira contornar as barreiras e voltar à poesia. Três meses após iniciar-se no emprego, já pôde ver seus textos estampados no Correio Mercantil, um dos dois maiores jornais da Corte, que na primeira página da edição dominical de 6 de dezembro publicou o poema O juramento, precedido por uma elogiosa nota da redação. Como se não bastasse, no dia seguinte, o diário dirigido por Francisco Otaviano voltou a dar-lhe destaque, publicando A virgem loura, página em prosa que no dia 16 seria reproduzida no jornal O Popular, de Porto das Caixas.
Depois disso, Casimiro não parou mais. Sucederam-se os poemas, que variavam de bons e ótimos a verdadeiras obras-primas, e que foram tomando as páginas do Correio Mercantil, d’A Marmota, do Diário do Rio de Janeiro, d’O Espelho, d’O Tyrano, do Jornal da Sociedade Filomática, do Jornal do Recife, d’O Popular de Porto das Caixas e d’O S. Joaneiro de Barra de São João. Só no Correio Mercantil, excluindo os dois textos já citados, publicou, de 26 de janeiro de 1858 a 7 de março de 1860, nada menos que 14 poemas e um necrológio pela morte do amigo Macedinho. Tudo isso, entende-se, em meio às agruras que faziam do seu quotidiano um inferno contínuo, desgastante.
Sabiamente, não publicava tudo. Aos inéditos que trouxera de Portugal, ia juntando outros, reservando-os para o livro. Quanto a este, parece ter voltado a mobilizá-lo nos primeiros meses de 1858. Na carta de 1º de abril a que nos referimos acima, ele diz a certa altura, “Quero ir arranjando e retocando todas as minhas asneiras, pois preparo-me para em janeiro, nos meus anos, dar à luz um volume de poesias”. Depois, no dia 21, em resposta ao amigo que lhe pedia colaborações para O Popular, volta a bater nessa tecla: “Continuarei a mandar-te alguma coisa, porém não será muitas vezes, porque tendo de publicar um volume é preciso que não mostre todas nos jornais.”
Poucos livros terão custado ao autor a taxa de paciência que a Casimiro custou-lhe o seu. Ainda em Lisboa, em 12 de julho de 1856, havia acertado a segunda edição do mesmo, que já tinha até título, Primaveras, quando não podia sequer sonhar com a primeira. Só agora, após dois anos, é que as coisas pareciam tomar rumo. Em 7 de julho de 1858, escrevendo ao amigo de Porto das Caixas, ao dizer que Gonçalves Dias havia chegado à Corte, acrescenta: “Talvez que eu lhe peça um ─ juízo crítico ─ para o meu volume de poesias, com a publicação do qual julgo poder principiar em fins de agosto ou setembro.” Depois, algumas linhas à frente, diz mais; que pensava em fazer a impressão do livro “em Niterói na tipografia do Quirino”, onde Pedro de Calasans fizera a do dele.
Decidiu, porém, de outro modo, e em carta do dia 13, se apressa a dizer ao Couto: “─ Ontem nas notícias diversas do Mercantil vem pomposamente anunciado que se acha aberta a assinatura para as minhas poesias ─” E de fato, na primeira página do Correio Mercantil do dia anterior, saíra a seguinte nota, que poderia ser do próprio Otaviano, admirador confesso de Casimiro:
“─ Os cantos do poeta moço, cujo coração começa a despertar, são como os risos da natureza na estação da primavera: céu azul, campinas verdejantes, arvoredo com flor, flores com perfume, perfumes com certa magia; e o poeta, no meio de todas essas harmonias, sonhando, sorrindo, esperando e tendo fé!… Um poeta moço, de que temos dado a nossos leitores algumas poesias tocantes e delicadas, o Sr. Casemiro (sic) de Abreu, está preparando um ramalhete de suas produções mais mimosas, que se hão de publicar sob o título de Primaveras. Recebem-se assinaturas na casa do editor, o Sr. Paula Brito.”
A nota tem valor no que toca ao biográfico. Ela deixa claro que foi entre o dia 7 de julho de 1858, quando Casimiro ainda pensava imprimir o livro em Niterói, e o dia 11 daquele mês, quando o jornal foi impresso, que o poeta acertou com Paula Brito a edição de Primaveras. O que não significa que, àquela altura, já tivesse o livro pronto. Basta ver que, nele, há poemas datados de setembro, outubro, novembro, e até dezembro de 1858, como é o caso de “Deus!”, “De joelhos”, “Fragmento” e “No jardim”. Aliás, há dois textos, a introdução e o poema-dedicatória, datados de 20 de agosto de 1859, quando o livro já se achava a poucos dias de ser entregue aos leitores.
Percebe-se que, uma vez decidida a publicação de Primaveras, Casimiro produziu sofregamente para encorpar o seu livro. Driblando toda espécie de problemas, fosse a falta de tempo ou de dinheiro, achava sempre um modo, não só de continuar encaminhando novos textos aos jornais, como também de compor vários outros que deixava na gaveta. Difícil mesmo era a situação no trabalho, onde as pressões haviam chegado a tal ponto que, em 16 de fevereiro, enchera-se de brios e pedira demissão. Obrigado porém pelo pai, voltara ao emprego alguns dias depois, cabisbaixo e humilhado, até ser posto definitivamente na rua um ano e quatro meses mais tarde.
Casimiro sonhava com que o livro estivesse pronto em outubro. Planejava publicá-lo sozinho, sem apelar para o pai. Em 20 de julho, de posse das listas de assinaturas, envia ao Couto duas delas, orientando-o sobre como as usar. A certa altura lhe diz:
“─ Em dois dias já tenho arranjado cento e tantas na Escola Militar etc, faltando ainda a de medicina, marinha, etc pois que eu desejo ser lido pela rapaziada ─ Hoje escrevi para o Freitinhas ─ sócio do Freese ─ que me prometeu algumas assinaturas no Queimado e em Cantagalo, e tenho a firme convicção de que hei de cobrir as despesas da impressão que é o que eu desejo.”
A sofreguidão por obter assinaturas parece ter-se voltado contra Casimiro, que caiu com varíola no dia 31. A doença, pondo-o de cama por todo o mês de agosto, o fez mudar de planos. Em 27 de setembro, sufocando o orgulho, escreve ao pai e pede ajuda para o livro, como relata ao Couto um mês depois:
“Faz hoje exatamente um mês que escrevi a meu Pai pedindo licença para a publicação do meu volume, e também dinheiro para isso ─ (que é o principal e único motivo porque ainda não tem saído). Ainda não recebi resposta e creio mesmo que não me há de responder. Outro dia fiquei tão zangado que mandei uma poesia levada de 600 diabos para o Mercantil, mas o Otaviano não a quis publicar.”
Casimiro errou duplamente. Primeiro, porque o pai acabou autorizando Câmara Cabral & Costa a repassar-lhe a importância que lhe havia pedido, como ele diz ao Couto em post scriptum à correspondência de 27 de outubro:
“─ Acabo de receber uma carta de meu Pai, em resposta ao meu pedido. Ele escreveu à Casa dos meus amos, dizendo que se acharem que eu assim cumprirei melhor as minhas obrigações podem fornecer-me a quantia necessária.
─ Não gosto disto; eu queria uma autorização franca, sem restrições, por que (sic) meu Pai deve interessar-se pela publicação do meu volume ─ Não sei se aceito ou não; ainda hei de refletir sobre isso.”
Errou também porque, em 11 de novembro, o Correio Mercantil publicou o tal poema “levado de 600 diabos”. Tratava-se de “Dores”, um longo e vigoroso grito de indignação, onde, ainda que de maneira indireta, Casimiro atacava a figura do pai. Deixou porém no ar uma dúvida. No post scriptum, dera a entender que poderia aceitar ou não a ajuda paterna. E ao que parece, não aceitou. Afinal, teve tempo para correr à redação do jornal e retirar o poema. Não o fazendo, e pior, incluindo-o depois em Primaveras, passou a impressão de que não aceitara o dinheiro do pai e que, no fundo, buscava um rompimento público com ele.
Registre-se, aliás, que ao ditar seu testamento em 11 de outubro de 1860 na Fazenda do Indaiaçu, Casimiro se lembrara de acrescentar-lhe esta cláusula: “Declaro que sou devedor a Francisco de Paula Brito de uma quantia, de que não me recordo o total, resto da impressão das minhas poesias.” Ela dá a entender que, se ele tivera ajuda para imprimir o seu livro, não a tivera completa.
A publicação de “Dores” é das mais tristes passagens da vida de Casimiro, que alimentava vários tipos de ressentimento contra o pai, começando pelo fato de o manter na condição de bastardo, de ter interrompido os seus estudos, de haver-se separado de Luísa, sua mãe. Agia contrariamente à própria natureza, que era compassiva e generosa. Mas não conseguia engolir, superar os transtornos decorrentes dos erros e da vontade do pai. Vivia, pois, em conflito. Nesse contexto, o poema “Dores” foi uma espécie de vômito catártico, algo que ele não pôde ou que não soube evitar. Mais tarde, após a morte de José Joaquim, ao descobrir que este o havia perfilhado juntamente com as irmãs, reviu sua atitude. Roído de remorso, no isolamento da roça, compôs os versos do que seria um de seus mais belos poemas, que infelizmente só se conhece incompleto, rascunhado, e que assim começa: “Perdão, meu Pai, se em loucos desvarios / Manchei-te as cãs honradas da velhice / A ovelha desgarrada nos desvios / Volta ao redil…”
Quando o livro ficou pronto, Casimiro já não se achava tão mal. Após dois meses de agruras em que chegara ao fundo do poço, seu primo Antônio José Marques de Abreu Júnior o havia socorrido, levando-o para a firma em que era sócio. Situada em imóvel que existiu na Rua da Quitanda, 195, junto ao Beco de Bragança, João Baptista Leite & Cia dedicava-se ao ramo de secos e molhados, e também de madeiras. Ali, Casimiro passou os derradeiros oito meses em que, na condição de assalariado, trabalhou como caixeiro na Corte.
Foi desse curto tempo, sete meses a rigor, que ele dispôs para divulgar o livro por que tanto lutara. Mas não se sentia animado a fazê-lo. Na mesma carta de 7 de setembro de 1859 em que anuncia ao amigo de Porto das Caixas que o livro ficara pronto, há uma queixa que o comprova:
“Se eu agora estivesse ainda desempregado, havia de passar bastantes exemplares, mas assim preso todo o dia no escritório e cada vez mais aborrecido da minha vida nem tenho tempo para isso, nem me importo com nada. O Paula Brito é quem me faz tudo, porque eu tenho a tal moléstia que me mata: ─ a preguiça!”
Realmente, no dia 16, a quarta página d’A Marmota, editada por Paula Brito, já exibia este anúncio:
AS
PRIMAVERAS
pelo Snr.
CASIMIRO DE ABREU
Acha-se publicado este interessante volume das belas poesias do Sr. ─ Casimiro de Abreu ─ já conhecido do público e particularmente dos nossos leitores, pelos lindíssimos versos a que temos por vezes dado lugar na nossa folha. É uma brochura de mais de 300 páginas, em papel da Holanda, nítida edição, ao gosto moderno. Preço 4$000 rs.
Casimiro organizara a obra, dividindo-a em 3 “Livros”. O de no I, com 18 poemas, tem 3 blocos, dois deles com títulos: “Brasilianas” e “Cânticos”. Os livros II e III contêm 26 poemas cada, sendo que o III tem 2 blocos; um com 20 poemas, e o outro, “Livro negro”, com 6. O total, incluída a dedicatória “A”, é de 71 poemas. Destes, pasmem, 46 eram inéditos. Os outros 25 já tinham sido publicados; 5 n’A Ilustração Luso-Brasileira, em Lisboa, e os restantes no Brasil: 10 no Correio Mercantil, 3 no Jornal do Recife, 3 n’O Popular, de Porto das Caixas, 1 n’O Tyrano, 1 no Jornal da Sociedade Filomática, 1 no Diário do Rio de Janeiro e 1 na Revista Popular.
Outro ponto interessante é o que se refere aos anos de composição. Dos 71 poemas contidos no livro (excluindo-se 4 que têm datas imprecisas, e “A” que é de 1859), 3 são de 1855, 3 de 1856 e 11 de 1857. Os outros 49, pasmem de novo, são de 1858. Por aí se vê o quanto Casimiro produziu nesse ano, apesar dos percalços que nele enfrentara. E mais. Foi em 1858 que ele compôs a maior parte de seus melhores poemas, como “Canto de amor”, “À morte de Afonso de A. Coutinho Messeder”, “Minh’alma é triste”, “A J. J. C. Macedo-Júnior”, “Amor e medo”, “A valsa”, “Pepita” e “Mocidade”, obras-primas que consagraram seu nome e serviram de alicerce à sua glória.
A dedicatória do livro ─ “A F. Otaviano.” ─ foi vista por alguns como um lance interesseiro e oportunista, já que o homenageado, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, era diretor do Correio Mercantil, o que, insinuava-se, garantiria, além de publicidade para a obra, espaço para novas publicações no poderoso diário. Não pensaram na hipótese contrária; de que poderia ser um modo que Casimiro encontrara de, publicamente, demonstrar gratidão por quem tanto o havia prestigiado com a sucessiva divulgação de seus textos.
A propósito, em 1851, quando das diligências efetuadas em Rio das Ostras com vistas ao aniquilamento do tráfico de escravos, Francisco Otaviano ocupava a Secretaria de Governo da Província do Rio de Janeiro, razão por que atuou na troca de documentos secretos entre a Presidência fluminense e o Ministério da Justiça. O seu “Conforme” e a sua assinatura podem ser vistos em alguns desses ofícios. Oito anos mais tarde, é provável que já não se lembrasse das citadas diligências, e que não tenha ligado o nome de Casimiro ao de José Joaquim Marques de Abreu. Mas não deixa de ser irônico que tenha sido a ele, exatamente a ele, Francisco Otaviano, que Primaveras tenha sido dedicado.
Orgulhosamente, na folha de rosto do livro, Casimiro anuncia que é “Natural da Província do Rio de Janeiro”. Não podia prever que, no futuro, iria transformar-se no maior ícone da cultura fluminense, como o escritor Luiz J. Gintner mostrou em pesquisa que fez e publicou no no 27 do boletim O bibliófilo investidor (Rio de Janeiro, 1992). Diante da pergunta: “Que escritor você associa de imediato ao seu estado natal?”, a grande maioria dos fluminenses consultados respondeu que, em relação à cidade do Rio de Janeiro, Machado de Assis; em relação ao estado, Casimiro de Abreu.
Poucos livros da poesia brasileira terão tido, ao surgirem, a acolhida que se deu a Primaveras. Devemo-nos lembrar porém que, mesmo antes de publicá-lo, Casimiro já era um nome conhecido e admirado em nossos meios literários, graças à divulgação de seus textos na imprensa da Corte. Já havia, inclusive, merecido uma verdadeira consagração, representada pelo artigo “O Sr. Casimiro Abreu”, que José Maria Velho da Silva publicara no Correio Mercantil de 14 de março de 1858. Seis meses depois, em 29 de setembro, Reinaldo Carlos Montoro também lhe dedicara palavras altamente elogiosas no ensaio “Duas épocas da mocidade brasileira – 1831/1858”, publicado no Diário do Rio de Janeiro.
Não é de estranhar, portanto, que ao vir a público na primeira semana de setembro de 1859, o livro de Casimiro se saísse tão bem. Já no dia 20, na Revista Popular, Carlos José do Rosário aplaudiu, além do poeta, o editor:
“O Sr. Paula Brito incumbiu-se da impressão do volume, e cabalmente demonstrou que a arte tipográfica é tão conhecida no Rio de Janeiro, como em França, na Bélgica e Inglaterra; na realidade, não se pode casar melhor a simplicidade com o luxo e a nitidez.”
Era, de fato, um belo livro para os padrões da época. Impresso em papel da Holanda, que em sua Síntese histórica do livro Barboza Mello diz ser “muito resistente, fabricado a mão, usado para edições de luxo”, seu preço, quatro mil réis, equivalia ao de três meses de assinatura do Correio Mercantil.
Se focarmos o primeiro ano de vida do livro, veremos que ele repercutiu não apenas na Corte, mas em São Paulo e Recife, polos, já então, da nossa vida cultural. Só de poemas intitulados “A Casimiro de Abreu” a saudar o surgimento de Primaveras, há no mínimo quatro. Um deles, de Gonçalves Braga, publicado no Correio Mercantil de 27 de setembro, tocou profundamente Casimiro, que respondeu com os 150 versos do admirável “Meu livro negro”. Há também o de Santos Palmela, no Correio Mercantil de 30 de setembro; o de Bruno Seabra, n’A Marmota de 7 de outubro, e o de Almeida Cunha, datado de “Rio – 11 d’outubro de 1859”, que saiu em local não identificado, mas que se encontra transcrito na edição de Primaveras que se fez em Lisboa no ano de 1867.
Quanto à crítica, destacamos oito artigos, sendo quatro da Corte, dois de Recife, e dois de São Paulo. Na Corte, o primeiro a opinar foi Justiniano José da Rocha n’O Espelho de 27 de setembro de 1859, em texto curto mas elogioso, que A Marmota republicou em 14 de outubro. Vieram depois os comentários também positivos de “Ophir” (pseudônimo do cônego Dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro) na Revista Popular de 20 de outubro, e de “J. B. C.” (João Baptista Calógeras) em L’Echo du Brésil et de l’Amérique du Sud de 10 de dezembro.
Durante a curta vida de Casimiro, o Jornal do Recife, que surgira em 1º de janeiro de 1859, publicou cinco de seus poemas. Publicou também dois artigos sobre o livro Primaveras, que ocuparam toda a primeira página das edições de 19 de novembro e 10 de dezembro. Neles, Pedro de Calasans e Francisco Dias Carneiro Júnior analisam com carinho a obra de Casimiro. Calasans viu longe e acertou no vaticínio:
“Traçadas sob as vistas da verdade, que ditava ao poeta as paixões e os sentimentos, as expressões e as cores, as Primaveras hão-de viver. A sua vida não há de ser efêmera, como a desses meteoros literários, que fugazmente brilham, e desaparecem passageiramente.”
Tivemos a sorte de achar um texto esquecido, jamais citado por estudiosos de Casimiro. De autoria de Antônio Manoel dos Reis, que se diz “muito avaro de elogios”, foi divulgado no no 159 de O Publicador Paulistano, de 25 de outubro de 1859. Assim termina:
“Arrastado por uma viva simpatia que espontaneamente brotou em nosso coração, agradavelmente impressionado com a leitura de suas interessantes poesias, alimentamos o desejo de saudá-lo mesmo de longe, como um novo astro que desponta; cumprimos o nosso desejo embora mal; estamos satisfeitos. Oxalá o Snr. Casimiro de Abreu nunca arrefeça o louvável empenho de concorrer com o seu contingente para o engrandecimento das letras pátrias, e possa um dia colher os saborosos frutos das suas mimosas primaveras, e coroado de merecidos encômios, escrever seu nome na história da literatura brasileira a par dos Magalhães, Gonçalves Dias e outros. Como irmãos de letras nós o saudamos com todo o entusiasmo, enviando-lhe os nossos sinceros parabéns.”
Foi em 1860, contudo, que veio à luz o mais longo e caloroso comentário que o livro de Casimiro suscitou em seus primeiros meses de vida: “Casimiro de Abreu ─ Primaveras”, de Pedro Luís Pereira de Sousa. Publicado na Corte em 19 de março, o artigo, que tomou cinco das sete colunas da segunda página do Correio Mercantil, não sonegava aplausos ao autor de “Moreninha”:
“Casimiro d’Abreu tem a habilidade de falar do amor quase sempre, como duma matéria nova. (…) É admirável a frase elegante do poeta; não é como a onda que sai das profundezas do abismo e se atira às nuvens; é antes como a linfa cristalina, que vai murmurando através do vale.”
Foi de São Paulo que partiu o último dos oito artigos a que nos referimos algumas linhas acima. De autoria de Paulo Egídio de Oliveira Carvalho, foi publicado no número de junho de 1860 de Trabalhos Literários, órgão oficial da associação acadêmica “Amor à Ciência”. Do artigo, que é extenso, transcrevemos este trecho do final:
“O Sr. Casimiro de Abreu é um poeta; já tem do seu talento colhido sazonados frutos, e por certo colherá ainda muitos, porque o futuro radiante do Brasil, também o é dos sublimes apóstolos de suas tradições e crenças! Em suas poesias respira uma sensibilidade fina e delicada, um dos caracteres para o verdadeiro poeta.”
Infelizmente, Casimiro não pôde saborear o sucesso que seu livro começara a fazer. Chamado às pressas, embarcou no dia 4 de abril de 1860 para Barra de São João, donde seguiu para o Indaiaçu em socorro ao pai enfermo. A situação era grave, como ele mesmo diz em carta de 22 ao primo Antônio:
“À minha chegada aqui levei-o para a Barra, onde havia mais recursos, e nutríamos a esperança de que se restabelecesse, pois realmente ia indo muito bem; estava fraquíssimo e inteiramente exausto pois as febres intermitentes o consumiam há mais dum mês. Haviam (sic) ali diversas inflamações: do fígado, baço até que tudo se agravou. Numa ocasião em que fez um pequeno esforço saiu-lhe a hérnia e conservou-se fora 4 dias sem haver meio de reduzi-la. Era a morte certa e tentaram a operação; foi ela feita com toda a perícia e rapidez, mas a natureza estava tão abatida que não pôde resistir, ─ 5 horas depois sucumbiu.” No fim da carta, uma importante informação, “Faleceu no dia 17 de abril às 8 1/2 da noite.”
Três meses depois, ao retornar à Corte, soterrado sob um monte de problemas advindos das mortes do pai e do tio Claudino, ocorrida a 24 de maio, Casimiro já não tinha cabeça para cuidar de literatura. Como se não bastasse, sua saúde havia-se deteriorado enormemente. Na segunda quinzena de julho, em busca de cura, subiu para Nova Friburgo, onde permaneceu por quase dois meses e meio hospedado no Hotel Salusse. Dali, imprudentemente, na madrugada de 30 de setembro (como creio), acompanhado do amigo Fonseca Júnior, que o fora visitar, e também de dois escravos, desceu para a Fazenda do Indaiaçu, onde faleceu a 18 de outubro. À sua cabeceira, tinha a mãe e um tio, Manoel Joaquim Pinto Osório, por quem sempre dera mostras de carinho.
O corpo foi levado por terra até Barra de São João. O saudoso “Seu Zefe” (Zeferino Teixeira Bastos, 1912-1997), repetiu-me algumas vezes que seu avô materno, João da Costa Borges, dono duma fazenda ao pé do Morro de São João, assistira à passagem do corpo de Casimiro, transportado em rede, por escravos, acrescentando que, em seguida, seu avô, homem lido, se arrumara e fora também prestar homenagem ao poeta, velado em casa do boticário Sá Pinto, avô do futuro presidente Washington Luís. Devido à distância do Indaiaçu à vila (35 a 40 km), o séquito atrasou-se, fazendo com que o enterro começasse ao fim da tarde. Com isso, o sepultamento não teve um fecho adequado. Tendo caído a noite, todos se foram, deixando ao coveiro a tarefa de cobrir a sepultura no dia seguinte.
Situados no fundo do cemitério, os túmulos de Casimiro e seu pai ficam juntos, lado a lado. Dos primeiros tempos, no do poeta, só resta a nobre laje de mármore branco mandada colocar por Luísa, sua mãe. Décadas depois, tendo-se divorciado em Portugal, a irmã caçula de Casimiro, Albina Teresa, veio viver no Brasil. Em 1890, foi morar algum tempo em Barra de São João, provavelmente para fazer o que fez: restaurar o túmulo do irmão (talvez também o do pai), adornando-o com um belo gradil de ferro, que a alta salinidade do local não tardou a corroer. Posteriormente, novas restaurações foram feitas, mas a passagem dos anos, inclemente, as arruinou. Tudo que é sólido, já foi decretado, desmancha no ar. Com Casimiro não foi diferente. Dele, só ficou a poesia: a sua genial e cristalina poesia, que nunca deixou de habitar o coração dos brasileiros.
Agora, que se passaram 150 anos desde o 7 de setembro de 1859 em que o livro Primaveras ficou pronto e foi entregue aos leitores, agora, que o número de suas edições já deixou para trás a casa da centena e continua a crescer, agora sim, seria bom se Casimiro pudesse ler o quanto se escreveu sobre e ele e sua obra. Talvez não se espantasse. Afinal, parecia seguro de que seu nome e seus poemas chegariam à posteridade, como mostra na carta em que, em 16 de fevereiro de 1858, se demite do emprego em Câmara Cabral & Costa a fim de dedicar-se inteiramente à literatura: “De certo chamar-me-ão de louco e de mau filho, porém mais tarde hão de fazer-me justiça.”
O desenho de Debret focaliza a igreja de Barra de São João em que Casimiro foi batizado e o cemitério em que se encontra o seu túmulo, ao lado do de seu pai. (Coleção Geneviève e Jean Boghici.)
O antigo Hotel Salusse em Nova Friburgo.
(Revista A Lanterna, janeiro-março de 1906.)
Manoel da Fonseca Silva Júnior, amigo de infância e vida adulta de Casimiro, morreu na Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Col. Consuelo Maria Freire Guimarães – Monteiro Lobato (SP)
Local da antiga Fazenda do Indaiaçu, que foi propriedade do pai de Casimiro, e onde o poeta morreu. (Foto do autor, 1991)
Túmulo de Casimiro após a restauração feita em 1890 por sua irmã Albina Teresa.
(Revista A Lanterna, janeiro-março de 1906.)
Túmulos de Casimiro e seu pai após restauração de 1901. Hernâni Donato, Casimiro de Abreu – O cantor da saudade. (Edições Melhoramentos, no 19 da Série “Grandes Vultos das Letras”.)
Se você tem ou teve parentes em Porto das Caixas, Itaboraí, Cantagalo ou Cordeiro (RJ), se seu bisavô e bisavó se chamavam Francisco e Modesta, ou se seu avô e avó se chamavam Américo e Florinda, por favor, entre em contato conosco.
Se você tem alguma informação sobre eles, por favor, entre em contato conosco. O primeiro, contém o batismo de Casimiro; o segundo, os óbitos dele, de seu pai, de seu tio Claudino, e talvez o do padre Luiz Francisco de Freitas, que batizou o poeta.